sábado, 17 de fevereiro de 2024

Um pastor "desigrejado" na novela das 9

Pe. Santo e Pr. Lívio

No capítulo deste sábado, 17/02, da novela Renascer, uma conversa entre dois personagens trouxe à tona um fragmento da realidade religiosa brasileira. Padre Santo (Chico Diaz) dá uma carona para um recém conhecido que durante o trajeto se apresenta como um pastor "desigrejado", trata-se de Lívio (Breno da Matta),

Interessante notar que originalmente, na trama exibida em 1993, o autor Benedito Ruy Barbosa apresentou o personagem Lívio como um sacerdote católico que vivia numa contradição entre o compromisso com a Igreja e o amor por uma mulher casada.

Mas agora, no remake da novela dirigido por Bruno Luperi, neto do autor da trama original, Lívio surge como um pastor frustrado com os rumos que as igrejas evangélicas tomaram na sociedade, mas com uma fé viva e engajada. Tanto que cita em seu diálogo com o padre uma famosa frase do reverendo John Wesley, 'fundador" da Igreja Metodista: "o mundo é minha paróquia", que significa que está fora do templo o espaço para a espiritualidade comprometida com o bem.

Assim, produz uma interessante reflexão sobre o papel do segmento religioso evangélico que cresce a cada dia, abrindo diversas igrejas, apresentando uma pluralidade de visões de mundo, mas com setores consideráveis alinhados com discursos políticos antidemocráticos e fundamentalistas, que vêm contribuindo para o afastamento (por perseguição ou desistência pessoal) de membros que não concordam com tais posturas. O "desigrejamento" é um fenômeno que ocorre quando pessoas se frustram com as lideranças e posicionamento das igrejas, com isso se afastam da instituição religiosa, contudo, não abandonam a fé. 

Será que o padre e o pastor trabalharão juntos em iniciativas ecumênicas?

Acompanhemos o desenrolar do personagem nas cenas dos próximos capítulos.

Por Tony Vilhena - Cientista político

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Sociologia cheirando à cachaça

Numa dessas noites fui prestigiar uma atividade cultural em praça pública. Maravilha. Todos os cenários e personagens a postos: as vendas de lanche (bicicletas de “completo”, que, para quem não sabe, é a oferta de um salgado com suco a preço popular); os carrinhos de pipoca; a catadora de latinhas, sempre atenta; criançada alucinada nos minicarros e nas minimotocas; vós e vôs adulando os bruguelos; os grupos de jovens que tentam chamar a atenção por suas roupas extravagantes, atitudes irreverentes ou cara de mau; e, é claro, o clube de ébrios que se reúne ao acaso das circunstâncias da oferta e degustação da cachaça numa celebração pública e feliz de rostos que estampam o fracasso e a fraqueza do espírito humano.

De antemão, preciso esclarecer que este texto nasceu naquela noite refletindo sobre estes sujeitos tão comuns em qualquer cidade do Brasil, grande ou pequena, onde recebem uma série de apelidos como “papudinho”, “pé-inchado”, “cachaceiro”, “pé de cana”, etc, mas de maneira nenhuma tem a intenção de glamourizar a miséria humana do alcoolismo a qual homens e mulheres sucumbem após desilusões, impotências e desacertos.

Não interessa o ritmo, a banda, o estilo. Quando a música toca na praça, a ciranda dos biriteiros inicia seu show à parte. É presepada em cima de presepada. Às vezes rola uns desentendimentos, mas a solidariedade mecânica durkheimiana prevalece, pois a constituição interna de moral de cada grupo de pinguços ordena seu funcionamento e alimenta o sentimento de preservação coletiva. 

Eis que, na praça onde eu curtia uma interessante exibição de cultura popular, os troviscados logo criaram uma comissão de frente para carnavalizar seu próprio espetáculo. No jeito deles, os bebuns animavam até mesmo a própria atração oficial. Só que os seguranças do evento se entreolharam, trocaram informações via walk tok e não contaram conversa em expulsá-los do ambiente.

Quase ninguém percebeu essa tensão que escalou para, no meu julgamento, uma injustiça. Pois aquele esquadrão animado de vidas arruinadas não oferecia nenhum risco à continuidade do espetáculo público, tampouco suas danças tortas ofendiam os olhares de ninguém. Aliás, a maioria das pessoas está treinada socialmente a não enxergá-los, a não se importar com aquelas vidas. Então, por que usar a força para excluir aquele pequeno grupo do convívio das demais pessoas?

Confesso que minha indignação foi como a mosca do Skank, que, sem asas, não ultrapassa a janela da própria casa. Acovardei-me. E na sombra do silêncio cínico dos covardes contemplei mais uma derrota na vida daqueles desafortunados, que aceitaram seu enxotamento sem nenhuma tentativa de resistir.

Demorei para entender que os seguranças, ao optarem em acabar com a festa melancólica de meia dúzias de esfarrapados e retirar aquele grupo indesejável de lá não atuaram meramente na prevenção de atos de perigo, mas sim cumpriram uma atribuição prevista, carimbada e assinada no imaginário sobre as pretensões da sociedade a qual estão a prestar seu serviço de força: limpeza social.

Os seguranças, bem como as polícias, e todos seus aparelhos e aparatos cumpriram sua função cosmética. Nossa sociedade detesta se deparar com suas imperfeições, ainda mais nos tempos atuais de apologia suprema da vida perfeita para postagem em redes sociais. Logo, os seguranças aplicaram o filtro real, não virtual, para o aperfeiçoamento agradável da imagem do espaço público. Que saiam os sujos e xambregados antes que afetem o direito do selfie de alguém.

Quando eu disse no início que não pretendia romantizar o alcoolismo e suas consequências destruidoras é porque contemplo a beleza desgraçada de sua ocorrência nesses humanos degredados, ao passo que tenho consciência de que não há o que se florear sobre isso. Entretanto, sei que a presença desses sujeitos incomoda, visto que corrompem o que seria a normalidade, e isso para mim é importante sociologicamente.

Num mundo condenado à frieza dos contatos virtuais, a Internet dos papudinhos é o mundo real, na praça pública, com uma network vibrante, apesar de cambaleante.

Enquanto no capitalismo se celebra a proeza de se trabalhar muito para ganhar o que der para se sobreviver e se devota ao empreendedorismo, um eufemismos para “te vira e dá um jeito de produzir e consumir”, os papudinhos gastam seu tempo produtivo enchendo a cara, secando a garrafa, tonteando por aí. Acredito que pequenos grupos de papudinhos já abalaram mais a infraestrutura e a superestrutura com seu comportamento antissistêmico do que muitos de jovens que se autointitulam revolucionários, mas que nunca pisaram descalço num chão de terra e não passam de mimados, amamãezados e avovozados.

Boletos, cartão de crédito, contas, notas na escola, religião e suas culpas, reuniões chatas com familiares, hora de bater o cartão de entrada e de saída do trabalho, inflação… foda-se. Os papudinhos recriam sua família e refazem seus compromissos por outra lógica. É terça-feira, de manhã, abre-se a aguardente e se bebe até se fartar ou a droga acabar (mais provável). 

Os papudinhos são uma espécie de anjo, pois estão aqui, entretanto, não fazem questão de ser deste mundo. Como arautos, anunciam com a própria vida exposta ao relento que farão o avesso do que se espera de homens e mulheres em idade produtiva. Vivem no relógio do tempo divino edênico, sem serem atingidos pela culpa do castigo que o trabalho representa, pois, historicamente, trabalho vem tortura, que se impôs como consequência da desobediência humana aos caprichos de Deus. Todo dia é domingo.

Como sociólogos baumanianos, os papudinhos, ao constatarem a forma líquida da sociedade capitalista, que faz escorrer pelas mãos as certezas na economia, a segurança das instituições e a sensibilidade nas relações humanas, puseram suas esperanças numa garrafa e, de dose em dose, vão bebendo até sobrar apenas o frasco.

Os papudinhos com seu desapego ao mundo ofendem o recato e atemorizam o sentimento de ordem. Não fazem campanha, não distribuem panfletos ou criam “igrejas” para atrair novos adeptos… Quem quiser ousar que os siga. E é aí que mora o perigo de sua atração para quem defende o ordenamento, os cidadãos de bem, a meritocracia, etc. E é por isso que eles são combatidos, ridicularizados e reprimidos para que seu exemplo não se espalhe numa perigosa febre, que como toda febre apenas demonstra com a elevação da temperatura que o corpo está combatendo uma enfermidade presente.

Aliás, por triste ironia do destino, fui informado que a praça citada no início, hoje chamada de Praça de Esportes Radicais, na cidade de Parauapebas/PA, antes da reforma era chamada carinhosamente de “Praça do Pé Inchado”, numa “perigosíssima” homenagem do povo aos grupos de papudinhos que se reuniam lá.


Por Tony Vilhena - Cientista Político

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Pesquisadores analisam a ação política dos terreiros contra o racismo religioso


No dia 03 de dezembro recente o terreiro de Umbanda 'Morada de Marabô', que há mais de 10 anos funciona na Ilha de Mosqueiro, em Belém/PA, foi vandalizado covardemente, aumentando as estatísticas de racismo religioso que impactam as religiões de matriz africana.

Motivadas por questão de fé, essas violências sofridas por afrorreligiosos/as e suas instituições não podem ser consideradas apenas como intolerância religiosa, diluídas em motivações circunstanciais. Devem, sim, ser tratadas como racismo religioso porque se originam do sentimento de negação de direitos, inclusive o de livre exercício de crença, das populações negras e afrodescendentes, baseado nas relações desiguais e nos papeis sociais desempenhados por brancos (senhores/eucentrismo/cristianismo) e negros (escravizados/ancestralidade/religiões de matriz africana) desde o periodo colonial.

O racismo religioso reserva às comunidades/tradições de matrizes africanas um clima de tensão constante ao usar suas vestimentas e seus símbolos, ao manifestar suas crenças em público ou ao ter que se submeter a práticas da religião majoritária imposta na colonização, o cristianismo, que está entranhada no cotidiano como se fosse a única, verdadeira e inquestionável.

O bacharel em Direito Terence Lucena e o cientista político Tony Vilhena, no artigo Mobilização dos terreiros contra o racismo: estudo da criação do Grupo de Trabalho de investigação de assassinatos de lideranças afrorreligiosas no Pará, analisam a articulação de um Grupo de Trabalho (GT), criado para apuração dos casos de assassinatos de lideranças afro religiosas nos anos de 2015 e 2016.

O objetivo do trabalho foi de refletir sobre a relação de religião e espaço público a partir da compreensão da atuação política dos terreiros, investigando como a religião favorece a convergência do tratamento de diversos temas: intolerância, segurança pública, identidade, racismo, representatividade, etc.

Acesse o artigo no seguinte link: Mobilização dos terreiros contra o racismo...
LUCENA, T. C. VILHENA, T. Mobilização dos terreiros contra o racismo: estudo da criação do Grupo de Trabalho de investigação de assassinatos de lideranças afrorreligiosas no Pará. In: SOARES, M. G.; CHINGORE, T. T. Corpo, Cultura e Filosofia Africana em Perspectiva. Belém: UEPA/CCSE, 2023, p. 191-214.

O trabalho foi publicado no e-book Corpo, Cultura e Filosofia Africana em Perspectiva, disponível no link abaixo:



terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Conheça o e-book “Corpo, Cultura e Filosofia Africana em Perspectiva"


O Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade do Estado do Pará (UEPA) disponibiliza gratuitamente o e-book Corpo, Cultura e Filosofia Africana em Perspectiva no link abaixo:

A obra é produto do curso ministrado pela profa. Marta Genú Soares, doutora em Educação e coordenadora do PPGED, e pelo prof. dr. Tiago Tendai Chingore, moçambicano, doutor em Filosofia e em pós-doutoramento na UEPA.

Conheça os capítulos do livro:

1 FILOSOFIA AFRICANA: CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA BANTU PHILOSOPHY DE PLACIDE TEMPELS: Ronaldo Pinheiro Marinho; Tiago Tendai Chingore.

2 INFÂNCIA E SABERES QUILOMBOLAS: CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E SUA IMPORTÂNCIA IDENTITÁRIA NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM: Alcione Fiel de Freitas; Tiago Tendai Chingore.

3 DESAFIOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NA ESCOLA BRAGANTINA: Elizabeth Conde de Morais.

4 CORPO, INTERCULTURALIDADE E DOCÊNCIA: NOVAS PERSPECTIVAS ACERCA DO/A
PROFESSOR/A COM DEFICIÊNCIA VISUAL: Linda Carter Souza da Silva; Luzia Guacira dos Santos Silva.

5 SANKOFA PEDAGÓGICA: A RECONEXÃO COM O PASSADO PARA CONSTRUIR O FUTURO: Heverton Luis Barros Reis.

6 MÃE TERRA E O CORPO TERRITÓRIO: EMERGINDO UMA ESCRITA SENSÍVEL E ENGAJADA NA PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO A PARTIR DA MULHER QUILOMBOLA: Shirley Cristina Amador Barbosa.

7 EDUCAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE LUTA EM DEFESA DO CORPO-TERRITÓRIO-TERRA DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO PARÁ: John Cleber Sarmento Santiago; Vanuza da Conceição Cardoso.

8 CORPOS HUMANOS E NÃO HUMANOS DISPUTANDO ECÓTONO NUMA PERSPECTIVA
DE CONFLITO HOMEM-ANIMAL: Carlitos Luís Sitoie.

9 O TRASLADO DA RAINHA: AS VOZES NA CONSTRUÇÃO DA PESQUISA COM NARRATIVAS ORAIS DE MATRIZ IORUBÁ: Monise Campos Saldanha.

10 MOBILIZAÇÃO DOS TERREIROS CONTRA O RACISMO: ESTUDO DA CRIAÇÃO DO GRUPO DE TRABALHO DE INVESTIGAÇÃO DE ASSASSINATOS DE LIDERANÇAS AFRORRELIGIOSAS NO PARÁ: Terence Cunha de Lucena; Tony Welliton da Silva Vilhena.

11 DESCONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO DOMINADOR E COMPREENSÃO DA BONITEZA INTERCULTURAL DOS SABERES: Eliana Santos dos Santos.

12 LUTA MARAJOARA: IDENTIDADE E SABERES CULTURAIS NA TESSITURA DE MEMÓRIAS ENTRELAÇADAS DE UM PROFESSOR: Luanna da Silva Lima; Márcia Cristina dos Santos Bandeira; Iêda Oliveira Mota; Marta Genú Soares.

13 LUTA MARAJOARA E FILOSOFIA AFRICANA: DESCONSTRUINDO SABERES NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA: Luanna da Silva Lima; Rafael Bonneterre.

14 O JOGO EM TEATRO COMO ARTICULADOR NA INVESTIGAÇÃO E MEDIAÇÃO DE CULTURAS: UM ESTUDO DE CASO NO PETEC - PROJETO DE ENSINO TEATRAL NA ESCOLA E NA CIDADE: Eduardo Augusto Martins de Melo.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Convite para a 6ª edição do Colóquio Internacional de Diálogos Sul-Sul (evento preencial e on-line)


O colóquio vai se realizar pela primeira vez em um território de povos indígenas: o território do Povo Tembé Tenetehar da Terra Indígena do Alto Rio Guamá (TIARG) – Aldeia Zawara Uhu, localizado no Município de Santa Luzia do Pará/Brasil.

Quando:No período de 29 de novembro a 1º de dezembro de 2023, de forma híbrida. 

Tema: "Território, Saúde, Cultura e Educação na Perspectiva dos Povos Amazônidas".

Para as inscrições, acesse o link: https://doity.com.br/vi-coloquio-internacional-dialogos-sul-sul/inscricao.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Curso: Evangelicxs, Diversidade e Bíblia



Dias do evento: 11 e 12 de Novembro de 2023

Evento Virtual
Horário: das 14h às 17h


Este evento faz parte dos cursos de formação, ensino e aprendizagem oferecidos pelo Evangelicxs pela Diversidade.

O Evangélicxs pela Diversidade busca preencher no universo evangélico brasileiro uma lacuna na reflexão e ação na perspectiva da afirmação da diversidade sexual e de gênero. É uma iniciativa ministerial em movimento que parte de um chamado e vocação missionárias a fim de ser parte ativa da construção do Reino de Deus que inclua e afirme as pessoas LGBTI+.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Epistemolo(r)gia para “amar e mudar as coisas”

Por Tony Vilhena - Cientista Político


SENTE AQUI, VAMOS CONVERSAR

Belchior (1976) cantava em “Alucinação”: “Mas eu não estou interessado em nenhuma teoria / Em nenhuma fantasia, nem no algo mais / Amar e mudar as coisas me interessa mais” (grifo nosso).

Em tempos de negacionismo científico, onde considerável número de pessoas à luz do dia, conversando no sofá da sala ou teclando em seus celulares, parecem orgulhosas com sua ignorância na rejeição ao uso de vacinas ou na contestação de que a ação humana irresponsável tem contribuído para a crise climática, é bom negritar que, evidentemente, Belchior não é um desses energúmenos.

Cantar com Belchior o nosso desinteresse por teorias é questioná-las. Até que ponto elas realmente se preocupam com a vida das pessoas? As pessoas impactadas por estas teorias têm participação no processo? A quem a teoria vai servir? Se estas perguntas não têm respostas satisfatórias, para tudo.

A filosofia da ciência é tão útil para os cientistas como ornitologia é para os pássaros”. Esta frase, atribuída ao físico Richard Feynman, já se tornou clássica quando se reflete sobre a (in)utilidade da filosofia, incluindo a epistemologia, para o empreendimento de pesquisas e seus desdobramentos.

Antes de comentar nossa impressão sobre a frase, já que se falou de pássaros, precisamos relembrar que a academia, este lugar privilegiado da pesquisa científica, é metaforizada como uma gaiola. Sim, uma gaiola cômoda, bem arejada, até espaçosa, com comida a vontade, admirada por quem olha de fora e contempla o jeito faceiro de quem está lá dentro, mas sem a liberdade do céu.

Destaca-se aqui a reflexão de doutor em matemática Ubiratam D’ambrosio (2018, p. 199), que informa que:

Durante alguns anos, tenho utilizado o conceito de “gaiola epistemológica” como uma metáfora para descrever sistemas de conhecimento. O conhecimento tradicional é como uma gaiola de pássaros. Os pássaros na gaiola comunicam-se numa linguagem somente conhecida por eles. São alimentados com o que está na gaiola, voam apenas no espaço da gaiola, veem e sentem apenas o que as grades da gaiola permitem. Eles se repetem, reproduzem e procriam. Mas não podem ver a cor exterior da gaiola. Uma situação semelhante pode acontecer com os estudiosos especializados. Os estudiosos na gaiola desenvolvem seu próprio jargão e aderem a padrões metodológicos e ontológicos rigorosos. Superar a mesmice acadêmica é um grande desafio. É frequente ver pesquisadores subordinando os seus alunos a temas propostos pelos orientadores, restringindo o seu espaço para a criatividade.

Independente de confirmação de autoria de Feynman, que inclusive ganhou o Nobel de Física, em 1965, pelos seus estudos de eletrodinâmica quântica, a frase do início contém uma provocação do desejo da objetividade prática do fazer científico, em desprezo ao questionamento sobre os efeitos sociais, éticos e estéticos que deveriam balizar o percurso das pesquisas.

Dessa forma, a tendência de distanciamento entre academia e sociedade se consolida. Pois, com o afastamento da problematização oriunda das epistemologias que levantam os porquês norteadores e preocupações com os produtos gerados, restará o pragmatismo acadêmico sustentado pela pretensão de que os cientistas sabem o que é melhor para a sociedade e sabem quais são os conhecimentos válidos e interessantes.

Lógico, é notável o reconhecimento que essa forma consagrada de fazer ciências obteve, com vários avanços em todos os ramos do conhecimento. Inclusive, a palavra consagrada vem a calhar, porque a ciência, cheia de si própria, chegou a conceber o fim da religião, alegando que esta explicava o mundo pelo encantamento, logo, era um conhecimento que não passava pelo crivo do método, da experiência, do laboratório e de sua pseudoneutralidade.

[…] con el advenimiento de la visión científica del mundo, incluso los valores pudieron ser sometidos a la observación empírica, a la medición matemática y a la prueba. Enfatizó que con este desarrollo la ciencia se ubicó como la oposición más fundada a todas la visiones religiosas del mundo, las cuales, en tanto postulados éticos, afirmaban la “falta de sentido” de la vida mundana y de ciertas acciones, como resultado de su valoración de los caminos particulares de salvación. (KALBERG, 2005, p. 110).

Ou como argumenta Echeverri (2004, p. 04):

El racionalismo omniabarcante y desdoñoso de otros saberes, no podía aceptar que el mundo mítico estuviera en el mismo plano del mundo tecnocientífico. El acontecimiento más importante de la modernidad fue, por tanto, el abandono que el hombre hizo de los dioses, del mundo de lo sagrado, del mundo de lo mítico, del mundo de lo poético — de la posibilidad de expresión del ser como poético— para pasar al mundo de lo calculado, de lo exacto, de lo explicable racionalmente, del mundo amputado, precisado, despoetizado, desencantado.

A ciência e seu racionalismo eram o novo sagrado, com devotos empedernidos (pesquisadores/as), templos concorridos (universidades), livros sagrados (periódicos) e deuses para a adoração (cientistas de renome). Contudo, o século XX passou, a religião se reinventou e está mais vigorante do que nunca, para o mal e para o bem, e quem hoje está para ser superada é aquela ciência.

Neste ensaio, abordaremos algumas críticas feitas à ciência tradicional e possibilidades de um novo paradigma para o fazer científico.


CINEMA E SUPERAÇÃO DO PARADIGMA CIENTÍFICO


O presente trabalho é escrito num momento histórico do cinema, onde duas histórias diametralmente opostas levam multidões às salas: Barbie e Oppenheimer. Em alguns casos, cinéfilos assistem os dois filmes em seguida. O filme da Barbie (2023), apesar de ser uma história fictícia, baseada numa boneca loira e fútil, altamente lucrativa para seus fabricantes, apresenta com humor questões atuais sobre feminismo, enfrentamento ao patriarcado e a importância da união das mulheres, numa desconstrução da personagem original. Já o filme Oppenheimer (2023) trata do cientista que coordenou o laboratório que criou a bomba atômica nos EUA. Os dois filmes trazem reflexões epistemológicas sim, e por que não?

A reviravolta de Barbie, de uma boneca com estereótipos comportamentais (preocupação com maquiagens, sem trabalhar fora de casa, heterossexual, etc.) e de aparência que impunham um padrão de beleza (branca, loira, magra, alta) para uma mulher empoderada, que mobiliza as demais mulheres na luta contra o patriarcado, quando Ken usurpa o poder na Barbilândia, pode bem representar a reviravolta na perspectiva científica que temos hoje. Visto que a ciência moderna se notabilizou em acender marcadores que separam o conhecimento (importante, validado) e o senso comum (marginal, apriorístico), bem como, em criar padrões técnicos de abordagem que fortaleceram visões de mundo de quem se impôs no poder político-cultural pela força e depois se manteve pela ideologia.

[...] tem de compreender os fenômenos sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas ações, para o que é necessário utilizar métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos deferentes dos correntes nas ciências naturais, métodos qualitativos em vez de quantitativos, com vista à obtenção de um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensível, em vez de um conhecimento objetivo, explicativo nomotético. Esta concepção de ciência social reconhece-se numa postura antipositivista e assenta na tradição filosófica da fenomenologia e nela convergem diferentes variantes [...]. Contudo, numa reflexão mais aprofundada, esta concepção, [...] revela-se mais subsidiária do modelo de racionalidade das ciências naturais do que parece. Partilha com este modelo a distinção natureza/ser humano e tal como ele tem da natureza uma visão mecanicista à qual contrapõe, com evidência esperada, a especificidade do ser humano. [...] ambas as concepções de ciência social pertencem ao paradigma da ciência moderna, ainda que a concepção mencionada em segundo lugar represente, dentro deste paradigma, um sinal de crise e contenha alguns dos componentes da transição para outro paradigma científico (SANTOS, 2000, p. 65-67).

A crise da ciência moderna ocorre porque na atualidade, a mobilização coletiva para a incidência política de segmentos sociais excluídos e a utilização de recursos de disseminação de informações e criação de redes pela Rede Mundial de Computadores pressionaram a academia para pautas outras como direitos de minorias, democracia participativa, questões identitárias e efeitos das mudanças climáticas. Nessa conjuntura, ecoou como denúncia o distanciamento entre o foco das universidades e os interesses e demandas da sociedade, do mundo real. O contato da academia com a sociedade por muitas vezes estava sendo realizado apenas para garantir a validade de um experimento, comprovar uma tese, vencer uma licitação em busca de recursos. A sociedade para esta perspectiva acadêmica é um objeto, por isso, muitas vezes, nem merece o devido retorno.

[…] o que quer que falte concluir da modernidade não pode ser concluído em termos modernos sob pena de nos mantermos prisioneiros de mega armadilhas que a modernidade nos preparou: a transformação incessante das energias emancipatórias em energias regulatórias. Daí a necessidade de pensar em descontinuidade em mudanças paradigmáticas e não meramente sub paradigmáticas (SANTOS, 2000, p. 93).

Por sua vez, em Oppenheimer temos um drama sobre um cientista que liberou uma equipe de trabalho para o desenvolvimento de armas nucleares. É a ciência a serviço da guerra, a serviço de quem paga mais sem se importar para a finalidade. As famosas e trágicas bombas lançadas pelos EUA nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945, na Segunda Mundial, contaram com a participação de Oppenheimer e sua equipe de cientistas. Arrependido, Oppenheimer, que era antifascistas e tinha inserção com setores comunistas, empenhou-se até a morte em iniciativas de controle de armas nucleares e divulgação de ciências.

Claro, das ciências para as guerras também obtivemos avanços tecnológicos que usamos no dia a dia (radares, GPS, computadores, alimentos de preparo instantâneo, medicamentos analgésicos e antibióticos, veículos, etc.) e um aparato de segurança e resoluções diplomáticas de política internacional que visam intimidar que conflitos se resolvam diretamente com tanques, tiros e mortes. Oppenheimer é o modelo de cientista da ciência moderna. Do seu laboratório, bate continência para quem lhe paga e só cumpre a missão. Militarismo e cientificismo são discursos complementares para justificativa de autodefesa e domínio do outro.

Sob a bandeira do progresso científico e da modernidade foram justificados ao longo da história genocídios por meio de discursos de eugenias e a destruição da natureza que foi colocada à disposição do homem possibilitando ignorar consequências éticas e até mesmo de sobrevivência desde que embasados por métodos racionais e quantificáveis. Na medida em que a ciência avançou surgiram questionamentos acerca de conquistas e retrocessos que a razão iluminista proporcionou, questionamentos quanto aos seus métodos foram respondidos com novas formas de interpretação e métodos, da investigação empírica de Francis Bacon ao método racional de René Descartes, com o positivismo de Augusto Comte à dialética marxista (GOMES; MARTINEZ-ÁVILA; VALENTIM, 2018, p. 223).

De Oppenheimer a Barbie, do boom do produtivismo acadêmico que levou milhares de pessoas a escreverem textos que ninguém leu a era do ChatGPT que leva milhares de pessoas a lerem textos que ninguém escreveu, compreendemos haver uma transição ou mudança de paradigmas, onde a discussão entre hard sciences e soft sciences estão na fila da padaria, no boteco do “copo sujo” ou em debates acalorados, usando caixa alta, em redes sociais.


EPISTEMOLO(R)GIAS, O QUE SERIA ISSO?


Cantem conosco:

Uh-uh-uh-uh-uh-uh, ah-ah / A novidade veio dar à praia / Na qualidade rara de sereia / Metade o busto, d'uma deusa Maia / Metade um grande rabo de baleia / A novidade era o máximo do paradoxo / Estendido na areia / Alguns a desejar seus beijos de deusa / Outros a desejar seus lábios prá ceia (GIL; VIANNA; BARONE, 1986).

Quando Os Paralamas do Sucesso e Gilberto Gil surgiram cantando essa canção na metade da década de 1980, um intelectual português já vinha interpretando essa novidade paradoxal da época, trata-se de Boaventura de Sousa Santos, que, em 1987, lança a obra “Um Discurso Sobre as Ciências”.

Sobre a perspicácia de Santos, a professora Ivanilde Apoluceno de Oliveira (2016, p. 102-103) disserta:

Santos (1997) ressalta que são fortes os sinais de que a racionalidade moderna está em crise: (1) é uma crise profunda e irreversível; (2) vivemos um período de revolução científica iniciada com Einstein e com a mecânica quântica, que não se sabe quando terminará; (3) e que só é possível especular sobre o paradigma emergente deste período revolucionário. […] Considera Santos (1997) que estas condições teóricas de crise provocam várias reflexões epistemológicas sobre o conhecimento científico com duas facetas sociológicas: (1) reflexão pelos próprios cientistas que adquiriram uma competência e um interesse filosófico para problematizar a sua prática científica; (2) reflexão sobre questões sociológicas, do domínio da sociologia da ciência, entre as quais: análise das condições sociais, dos contextos culturais, dos modelos organizacionais da investigação científica. As condições sociais estão pautadas na crítica às ideias da autonomia da ciência e da não neutralidade do conhecimento científico, que perante o fenômeno global da industrialização da ciência entraram em colapso, pelo vínculo com o poder econômico, social e político, tanto em nível de aplicações da ciência quanto ao nível da organização da investigação científica.

Mas, dentro dessas contradições apontadas, quem diria que por conta dessas mudanças de paradigmas que a “novidade” traz, do moderno para o emergente, hoje, quase deixo de citar o professor Santos porque ele está respondendo a várias acusações de assédio sexual de suas alunas. Lógico que a provocação da Epistemolo(r)gias não é por causa desse comportamento nojento de assédio.

No entanto, na constituição de um novo paradigma científico, o emergente, interessa-nos sim saber o que acontece nos bastidores dos laboratórios, sobre o que cientistas postam nas redes sociais, se um senhor de idade teve a audácia de usar seu prestígio e seu poder de professor para obter vantagens sexuais de suas alunas, como no caso de Boaventura Santos. Claro, que se defenda, pois é um direito básico. Porém, não podemos olvidar da situação de exposição e constrangimento das vítimas e negligenciá-las.

Estamos diante de um Mancala* metodológico, pois o reconhecimento de uma obra/teoria e a utilização de autores/as para dialogar como os problemas que nos levam a pesquisar interferem diretamente no alcance dos objetivos da investigação que nos propomos. Logo, reconhecemos ser de difícil decisão a escolha por usar a teoria de Santos, ainda mais se comprovadas forem as acusações, pois é de notoriedade internacional seu legado intelectual para as ciências. Até poderíamos substituí-lo por autorias mais recentes, não europeias, conforme já estava em andamento num processo “natural” da vida universitária, mas não pode ser um mero “cancelamento”.

Para a ciência tradicional não interessava para quem o cientista estava a serviço, se se alimentava de comida vegana ou não, se tinha ido para passeatas LGBTQIA+ ou não, se nutria simpatia por fascistas ou não, desde que realizasse seus experimentos e apresentasse seus relatórios dentro dos prazos de publicação. E assim passavam os calendários acadêmicos, entre canapés e bebidas chiques nas recepções de eventos acadêmicos elitistas, palestras entediantes proferidas com palavras incompreensíveis para um cidadão médio e mobilizações para melhorias de salários e financiamento de pesquisas.

A coruja, mascote da Filosofia, representa a epistemologia da modernidade. Sua origem é europeia. Não ignoramos sua capacidade de olhar de longe com seus olhos grandes, até no escuro, tendo um pescoço com rotatividade de quase 360 graus, seu voo é silencioso e quase sempre certeiro sob as presas. Mas é superestimada. A coruja vive pra si, preocupada com a afiação de suas garras e maciez de sua plumagem, fica lá no alto, arrogante, só se aproxima de outro ser quando lhe interessa para a refeição. Até seus ninhos são invasões nos ninhos de outras aves.

Queremos propor outra ave para representar uma outra epistemologia: o urubu. Sim, o urubu. Sua origem é nas Américas. Além de excelente visão, ele também desenvolveu o olfato para poder viver, ou seja, sente o (mal) cheiro das coisas mesmo que esteja muito longe e sem ter necessidade de ver o que está acontecendo. Ele voa bem, e vive plainando, mas também pisa no chão, se mistura com outros bichos, sente o calor do dia a dia. Não recebe a mesma atenção que as outras aves recebem, mas mesmo assim não deixa de cumprir seu trabalho que é de extrema importância. Falando nisso, aproveitamos para mandar um salve para os urubus do Ver-O-Peso, em Belém/PA.

Sobre essas perspectivas de produção e compreensão do conhecimento, compreendemos que

un saber que, con base en el discernimiento del conflicto entre los modelos de interpretación de la realidad, se articula en los movimientos sociales alternativos y liberadores, y de esta forma se integra a un plan o proyecto para realizar esas otras realidades que hoy parecen imposibles. Dicho en otros términos, se trata de un saber de realidades que sabe intervenir en el curso de la historia en nombre de lo que se ha negado como realidad posible. Pues la esperanza, las memorias reprimidas, la utopía, son parte de la realidad que podemos hacer (FORNET-BETANCOURT, 2009, p. 640).

Ademais, o pensamento não é um ato executado por mero interesse ou necessidade imediata. Todos nossos sentidos nos fazem pensar, mas os pensamentos não retornam integralmente ao mundo dos sentidos, nem mesmo que busquemos ter intenção e preparo de comunicá-los. As instituições legitimadas como espaço para a produção de conhecimento, escola e universidade, submetem os indivíduos a uma sobrecarga de informações, mas não conseguem acompanhar a contento as respostas cognitivas individuais, que poderiam reformatar as primeiras informações fornecidas. Elas cobram, em avaliações evasivas, que os indivíduos apenas a repitam as informações primeiras, desprezando a capacidade de desconstrução e reconstrução cognitiva do que foi repassado.

Talvez seja angustiante, após séculos de tentativas de erguimento da ciência moderna, conceber que ela está em esgotamento diante de outras possibilidades e ofertas de recursos para a produção do conhecimento científico. A Epistemolo(r)gia que falamos tem a ver com grau de desordem no cenário contemporâneo. Visto que, foram retiradas as pomposas vestimentas das ciências modernas, enquanto as roupas do novo paradigma ainda estão sendo costuradas, assim se viram nus no salão, estabelecendo uma relação de tesão e tensão festiva, de intercruzamento e interpenetração.

O aspecto positivo é representado pela ampliação das linhas de investigação, pela diversificação teórico-metodológica e pela utilização das mais variadas fontes de pesquisa. Mas, segundo alguns estudiosos, o que houve foi, na verdade, uma fragmentação epistemológica e temática que tem dificultado a compreensão da totalidade do fenômeno educacional. Mas ainda, estes estudiosos veem, nessa crise paradigmática, um movimento antimarxista e o abandono da perspectiva histórica. É justamente nesse momento que são privilegiados temas como cultura escolar, formação de professores, livros didáticos, disciplinas escolares, currículo, práticas educativas, questões de gênero, infância e, obviamente, as instituições escolares (NOSELLA e BUFFA, 2008, p. 16).

Não tratamos a desordem como algo negativo, pelo contrário. A desordem desloca os/as participantes do ambiente numa ciranda que esmaece a separação de papéis, permitindo que quem era apenas coadjuvante ou figurante da cena possa alcançar o protagonismo. Temos uma maior complacência metodológica, com uma gama incontável de técnicas, recursos e abordagens de pesquisa. Com isso, não se perdeu o rigor analítico, mas se ganhou em complexidade das teias performáticas do campo de pesquisa. Em suma, temos o paradigma científico emergente:

Há a superação do dualismo existente entre as ciências naturais e as ciências sociais e a proximidade entre as duas ciências tende a valorizar os estudos humanísticos. […] O conhecimento é total, pois tem como horizonte a totalidade universal, mas também é local, ou seja, tende a superar a parcelização e a disciplinarização do saber científico. A disciplinaridade é substituída pelos temas, que possibilitam o encontro com outros conhecimentos. […] O conhecimento científico é multireferencial. […] O conhecimento científico é auto-referencial, auto-biográfico e não separa sujeito do objeto. É mais contemplativo (reflexivo e estético) do que ativo (experimental). Ensina a viver e traduz num saber prático. […] O conhecimento científico não é o único considerado válido, sendo necessário dialogar com as outras formas de conhecimento, bem como transformar o seu conhecimento em sabedoria de vida (OLIVEIRA, 2016, p. 104-106).


CONSIDERAÇÕES FINAIS POR MAIS EPISTEME E MAIS ORGIA

Obra: Rede na RBA, da artista visual Katianne de Sousa Almeida

Episteme, do grego, significa conhecimento. Orgia é culto, festa, ritual à Dionísio, uma divindade do panteão grego.

Populações tradicionais, indígenas, quilombolas, têm conquistado espaços na sociedade e nas pautas das políticas públicas. São conquistas advindas após muita luta e resistência. A universidade pública, que em parte relutou em recebê-los através das cotas, agora está mais plural e colorida. Contudo, as rotinas acadêmicas ainda mantêm vícios do elitismo burguês que contribuem para o constrangimento e até para desistência de estudantes.

Entre os principais entraves, gostaríamos de destacar o ambiente e as relações acadêmicas que celebram o eurocentrismo e desprezam saberes outros; valorizam histórias e datas dos colonizadores e invisibilizam histórias e personalidades dos povos que foram explorados; congratulam-se por trabalhos que contam sobre, mas não se dispõem a fazer trabalhos com estas populações, ficando mais confortável tê-los com objetos que sujeitos.

Entretanto, aliando-se e fortalecendo o movimento por uma nova ciência, tendo como lastro a riqueza dos modos de produzir conhecimento que esses povos têm, podemos ampliar o leque de possibilidades e descobertas científicas que respondam ao interesse comunitário, das camadas trabalhadoras e de setores excluídos.

Outro foco relevante tem a ver com a mudança de perspectiva sobre o meio ambiente e o uso de recursos naturais. Se a ciência moderna, paradigma dominante, visava a capacitação das pessoas para explorar o máximo da natureza, sem preocupação que os recursos são esgotáveis, agora, sob o novo paradigma, sociedade e natureza são tratadas como partes integradas.

Essa transição entre paradigmas, onde ser vê complementaridades e conflitos entre as duas partes, dominante e emergente, gerando uma sensação de desordem e temor de não conseguir atravessar adequadamente a ponte que liga o real e o intelecto que precisa acessá-lo, elaborar uma compreensão e desenvolver uma apresentação da jornada, permite que agentes que antes não tinham vez ou no máximo eram apenas objeto estudado possam tomar a frente e reivindicar seu espaço de protagonistas, espaço de “amar e mudar as coisas”. (BELCHIOR, 1976).


* Jogo africano de tabuleiro.

REFERÊNCIAS


BARBIE. Direção: Greta Gerwig. Produção: Margot Robbie et al. EUA: Warner Bros. Pictures, 2023.


BELCHIOR. Alucinação. In: BELCHIOR. Alucinação. São Paulo: PolyGram, 1976. Lado A, faixa 1.


D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática, justiça social e sustentabilidade. Estudos Avançados, 32 (94), p. 189-204, 2018. Disponível em <https://www.scielo.br/j/ea/a/FTmggx54SrNPL4FW9Mw8wqy/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 24 jul. 2023.


ECHEVERRI, Ana Patricia Noguera de. El reencantamiento del mundo. Ciudad de Mexico: Programa de las Naciones Unidas para el Medio Ambiente; Manizales: Universidad Nacional de Colombia/IDEA, 2004.


FORNET-BETANCOURT, Raúl. La filosofia intercultural. In: DUSSEL, Enrique; MENDIETA, Eduardo e BOHÓRQUEZ, Carmen (EDITORES). El pensamento filosófico latinoamericano, del Caribe y “Latino” [1300-2000]. Ciudad de México: XXI, 2009.


GIL, Gilberto; VIANNA, Herbert; BARONE, João. A novidade. In: OS PARALAMAS DO SUCESSO. Selvagem?. EMI-Odeon, 1986.


GOMES, Luciana; MARTINEZ-ÁVILA, Daniel; VALENTIM, Marta Lígia Pomim. Pós-Modernidade, Capitalismo e Conhecimento: Uma Análise Crítica. Complexitas - Rev. Fil. Tem., Belém, v. 3, n.1, p. 120-129, jan./jun. 2018.


KALBERG, Stephen. Los tipos de racionalidad de Max Weber: piedras angulares para el análisis del proceso de racionalización de la historia. In: ARONSON, Perla; WEISZ, Eduardo (org.). Sociedad y religión. Un siglo de controversias en torno a la noción weberiana de racionalización. Buenos Aires, Prometeo, 2005.


NOSELLA, Paolo; BUFFA, Ester. As Pesquisas Sobre Instituições Escolares: Balanço Crítico. HISTEDBR-UNICAMP, Campinas. São Paulo, nº 20 Anos, p. 1- 14, 2006 p. 1- 14. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Paolo_Nosella_artigo.pdf>. Aceso em: 10 de ago. 2023.


OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno. Epistemologia e Educação: Bases conceituais e racionalidades científicas e históricas. Petrópolis/RJ: Vozes, 2016.


OPPENHEIMER. Direção: Christopher Nolan. Produção: Christopher Nolan et al. EUA: Universal Pictures, 2023.


SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício de experiência. São Paulo: Cortez, 2000.