Para Givânia Maria da Silva, acirramento da discriminação deve ser enfrentado, com punição de agressões como crime racial
Foto: Drielly Jardim/Fundação Cultural Palmares
Nascida em quilombo
pernambucano, Givânia Maria da Silva é Secretária Políticas para
Comunidades Tradicionais do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e
Direitos Humanos
Um dos maiores
desafios que a população negra ainda enfrenta é o desrespeito e a
intolerância em relação a suas formas de expressar a fé. As religiões de
matriz africana, como o candomblé e a umbanda, que sempre foram alvo de
preconceito e generalizações, também tem enfrentado uma onda de
agressões e ataques contra seus símbolos e instituições.
Para a secretária de Políticas para Comunidades
Tradicionais do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos
Humanos, Givânia Maria da Silva, essas ações tem como fundamento o
preconceito racial, e se caracterizam como atos de "racismo religioso".
"Nenhum outro grupo religioso encontra tanta resistência e tantos
atentados. À medida que esses sujeitos se organizam como movimento e
querem manter suas tradições, eles batem de frente com a questão da
intolerância, com o nosso próprio processo de formação da sociedade
brasileira.", diz, entrevista ao Portal Brasil.
Para a secretária, este racismo tem se acirrado na
sociedade brasileira e usado questões de fé como pano de fundo. Ela
defende que somente a mudança estrutural da educação na sociedade
brasileira pode trazer resultados efetivos quando o assunto é igualdade
racial. Ela ainda conta que a atuação do governo federal atualmente se
dá em três esferas: o combate ao preconceito, a proteção a população e a
promoção da igualdade racial.
Confira a entrevista completa:
Qual é a situação das comunidades tradicionais em
relação à intolerância religiosa hoje em dia e ao que pode ser atribuído
essa intolerância?
Nós temos que começar a falar desse tema pensando nas
marcas do processo de escravidão e do racismo que ainda opera em nossa
sociedade. As comunidades, povos de matriz africana e terreiros são
grupos forjados a partir da resistência e luta pela sua ancestralidade e
têm encontrado na sociedade, assim como outros grupos, uma resistência
muito forte. Isso tem levado ao que algumas pessoas chamam de
intolerância religiosa, mas que prefiro trabalhar com o conceito de
racismo religioso. Nenhum outro grupo religioso encontra tanta
resistência e tantos atentados. À medida que esses sujeitos se organizam
como movimento e querem manter as suas tradições, eles batem de frente
com a questão da intolerância com o nosso próprio processo de formação
da sociedade brasileira. É um acirramento do racismo em relação à
população negra e, agora, de forma mais modernizada, usando a questão
religiosa como pano de fundo. Nós temos o entendimento aqui no
Ministério de que essas ações devem ter um tratamento, após apurado os
fatos, de crime de racismo e que sejam punidos os culpados na forma da
lei. Não abrimos mão de pensar que é necessário punir as
responsabilidades, conforme a lei, de quem queima os terreiros, agride
uma criança porque vestiu uma roupa que a identifica com a sua religião,
linche publicamente nas redes sociais uma jovem que estampou em foto
também roupas que identificam como seguidora de algum culto. É
inaceitável, na sociedade plural que vivemos, aceitar esse tipo de
comportamento.
Por que a senhora pensa que algumas representações
culturais de matriz africana tem sido bem aceitas, como a música e a
dança, enquanto a religião ainda encontra essa rejeição?
Nós temos refletido bastante sobre isso. O samba já
foi proibido, a capoeira também já foi crime e hoje não são. Só que no
aspecto religioso, nós não podemos dizer que nós tivemos avanços que
essas outras expressões culturais tiveram. No tema da religião, a gente
precisa voltar um pouquinho em nosso processo histórico e pensar quem
estava aqui no Brasil, quem chegou para colonizar, que tipo de
colonização e quais foram as estratégias para essa colonização. O
desconhecimento do conceito plural que as religiões de matriz africana
carregam, de um deus que não é único, que não dá pra dizer se é homem ou
se é mulher, preto ou branco, criança ou velho, geram a propagação de
que religião de matriz africana é coisa do mal, coisa do diabo. Isso tem
criado uma cultura de ódio e rejeição ainda mais forte. Passamos muito
tempo iludidos com a democracia racial e ela cai por terra quando vamos
analisar o lugar do negro, como somos tratados, os indicadores, etc. Tem
pessoas que falam que o Brasil tem um racismo camuflado. Isso não é
verdade, hoje é muito mais exacerbado do que antes. As pessoas não tem
mais vergonha de se assumirem racistas, seja na televisão ou na
internet. Isso tem favorecido os ataques. O raciocínio é: 'Se eu posso
ir num canal de televisão e falar que eu odeio negros, gays e mulheres,
eu posso ir em um terreiro e queimá-lo, qual é o problema?' Não dá pra
não reconhecer que todos esses ataques tem raízes na nossa formação.
Esse que é o nosso grande desafio, encontrar a chave e trabalhar isso do
ponto de vista do combate, mas também proteger os direitos já
assegurados na Constituição como patrimônios. Ou seja, direito que é meu
e seu.
O que a gente pode dizer que o governo tem feito para garantir os direitos dessa população?
Acreditamos que para superar essa questão temos que
investir em políticas públicas. Fazer com que esse sujeito acesse os
serviços públicos, que historicamente lhes foram negados, e
que muitas vezes a sua condição religiosa e de pertencimento étnico
causa afastamento em função do nosso preconceito e racismo. Nós temos
históricos de pessoas, pais e mães de santo, que vão em busca de serviço
de saúde, por exemplo, e, ao serem identificados como tal, lhes são
negados. Só a partir da Constituição de 1988 é que alguns sujeitos
passam a existir de direito. E a construção de políticas para os povos e
comunidades de matrizes africanas de terreiro é uma coisa muito
recente, dos últimos 13 anos. É uma interpretação para reconhecer as
especificidades desses grupos. Há um decreto presidencial que reconhece
esses povos como sendo povos tradicionais, com direitos e
características específicas. A partir disso, vem se formulando um
conjunto de ações e políticas públicas voltadas para esses grupos. Nós
terminamos o primeiro Plano de Desenvolvimento dos Povos de Comunidade
de Matriz Africana, estamos no processo de elaboração do segundo Plano.
E, assim como o primeiro, é o esforço do governo federal de construir um
instrumento de sistematização de políticas públicas a partir das
demandas que esses grupos têm apresentado para nós. Temos dados de que a
universalização das políticas não dão conta dessas especificidades.
Como são estruturados esses planos?
Nós trabalhamos com três conceitos: o combate, a
proteção e a promoção. O Plano entra no campo da promoção, para promover
políticas públicas que permitam que esse sujeito acessem determinados
serviços. Também estamos atuando junto com o Ministério da Justiça para
formar os agentes de segurança pública. Se o delegado e os agentes
policiais não interpretarem e não reconhecerem isso como um crime, para
assim o descreverem, dificilmente iremos fazer com que a lei seja
cumprida. Outro trabalho é a mobilização e articulação dos Estados e
municípios. Se nós não conseguirmos fazer essa ligação das ações do
governo federal com os governos municipais e estaduais, não haverá
mágica. Achamos que esse trabalho pode levar os municípios e estados a
entenderem que reduzir desigualdades, reduzir pobreza e melhorar os
indicadores passa, sobretudo, pela inclusão de todos e todas que ali
residem, inclusive os terreiros, quilombos, indígenas, ciganos e todos
os outros povos que, na grande maioria, ficam de fora das políticas
públicas.
O que nos falta para sermos uma sociedade mais tolerante e caminhar contra a desigualdade racial?
Responderia com apenas uma palavra: educação. E não
estou falando em educação na sala de aula, mas enquanto processo
formativo para criar novos sujeitos e novos cidadãos. Não possível que a
gente consiga imaginar a nossa sociedade, formada com nossas bases,
ainda se manifeste de forma tão grosseira e desrespeitosa e eu diria até
vergonhosa com nós mesmos. Foi projetado na nossa mente, e tem sido
difícil de tirar, que para sermos uma sociedade melhor, temos que nos
afastar dos diferentes. Mas a realidade é o contrário, nós já somos por
si só diferentes. Nenhuma sociedade é tão plural como a nossa. Esse
nosso ser carece de compreender que as características dessa diversidade
não estão só no nosso rosto ou no cabelo, elas estão no nosso jeito de
pensar, de ver o mundo ou de nos relacionarmos com o sagrado.
Fonte: Portal Brasil
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