TEXTO: Comunicadores Feact Brasil
A Missão Ecumênica Pau d´Arco realizou, entre os dias 08 e 10 de
novembro, incursões ao Sudeste paraense, em solidariedade aos massacres e
desapropriações de terra que vêm ganhando força na região devido aos
conflitos fundiários. A ação contou com realização do Fórum Ecumênico
Brasil (FeBrasil), Processo de Articulação e Diálogo Internacional
(PAD), organização do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), Conselho
Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), Comissão Pastoral da
Terra (CPT), Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos
Humanos, Diocese de Marabá, Conceição do Araguaia e Xinguara, e apoio da
Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) e das agências internacionais
Misereor, Brot für die Welt, Christian Aid, Heks Eper e Fundação Ford.
O Brasil é campeão de assassinatos de ativistas e defensores do meio
ambiente no mundo, de acordo com a ONG Global Witness. Segundo dados da
CPT, de 2010 a 2015 ocorreram 210 mortes e 300 tentativas de homicídio
devido a conflitos de terra. Só em 2016 foram registrados 25 casos de
assassinatos e até agosto de 2017 já foram mortos 59 defensores e
defensoras de direitos humanos que atuam na luta pela terra. Hoje uma
grande parcela (18 assassinatos) foi registrada no Estado do Pará.
Tendo em vista essa realidade, os objetivos da Missão Ecumênica são
prestar solidariedade às famílias e comunidades atingidas pela violência
no campo; comprometer as igrejas e pastorais para se posicionarem
contra a violência no campo; incidir junto aos órgãos do Poder
Executivo, Legislativo e Judiciário; e ampliar a visibilidade dos
acontecimentos locais para o mundo.
Visita a Pau d´Arco
Em 24 de maio de 2017, dez trabalhadores rurais (uma mulher e nove
homens) foram brutalmente assassinados no município de Pau d´Arco
(Sudeste paraense), na fazenda Santa Lúcia. A chacina de Pau d´Arco é
considerada o pior massacre por conflito agrário desde a chacina de
Eldorado dos Carajás em 1996.
Um dos sobreviventes, que presenciou de perto o assassinato de seus
companheiros e companheira pela força policial, relembra os momentos da
madrugada de terror daquele dia 24. “Quando deu umas 18h [do dia 23],
vimos a polícia chegando. Mas a polícia de norma sempre vinha pra ver se
estava tudo bem, eles nunca faziam isso que eles fizeram. Então a gente
não ficou com receio de eles virem pra matar. Ninguém imaginava isso.
Daí, nós dormimos. Quando deu umas 5h, 6h, aí nós ouvimos de novo outro
carro chegando, batendo porta. Os meninos foram lá e, quando viram, eles
já estavam descendo o caminho pra represa e uns estavam de capuz. Aí já
assustou a forma que eles estavam vindo, tudo metralhado, quebrando
tudo, as panelas. Tinham uns lá na turma nossa que assustou e correram
com medo”, relata, em detalhes.
E foi neste momento, segundo a fonte (cuja identidade não será
revelada por motivo de segurança), que a polícia percebeu o local onde o
grupo estava. “Aí começou a chover, muita chuva e relâmpago. Dava pra
ouvir eles chegando. Eu escutei: “não corre não, se não vai morrer,
bando de bandido. Foram falando e atirando, não deu chance nenhuma. Ali,
como a gente estava, dava pra prender todo mundo, sem ter matado e
batido em ninguém. Foi um susto tão grande, que o pessoal se embolou por
cima da lona, um caindo por cima do outro. Quando eu consegui levantar
pra correr, levei um tiro nas costas e caí. Eu olhei, tinha um matinho,
uma moita, eu consegui ir pra lá. Foi quando eu ouvi a polícia: “não
corre não, se não morre. Mas era com alguém deles, eu achei que era
comigo, aí eu parei, fiquei imóvel ali”.
Escondido atrás de babaçus, a uns 15 metros do local dos
assassinatos, a fonte ouviu o espancamento e morte violenta de cada um
do grupo de dez pessoas. “Se eu olhasse pra trás, dava pra eu ver, mas
eu estava em choque, só ouvindo eles pisando, massacrando, batendo nos
meninos, muita pancada e tiro e humilhando. E a dona Jane [Jane Júlia de
Oliveira, a única mulher entre os assassinados], ‘não, não faz isso com
os meninos, não’. E eles, “era tu que nós queria mesmo’ [ela era
liderança do acampamento]. Eles atiraram muitas vezes na dona Jane [que
também teve a perna quebrada]. Eu escutei os meninos chorando, dizendo
‘por favor, a gente não vai correr não, a gente está quieto senhor’. E
aí começaram a atirar. Atiraram muito. Mas foi coisa de muito tiro,
fiquei sufocado com aquele cheiro de pólvora. Quando eu vi que não era
comigo o ‘não corre’, foi quando eu consegui rastejar pra uma moita.
Fiquei escondido no capim, esperando, a polícia rodeando, atirando. Eles
riam, riam”, destaca, desolado.
Segundo o entrevistado, a polícia chegou ao local do massacre por
volta de 5h horas da manhã e só deixou a região seis horas depois, às
11h do dia 24 de maio.
Giodete Oliveira Santos, parente de sete dos trabalhadores e
trabalhadora assassinados, era amiga próxima de Jane. “Não foi só uma
mulher que eles mataram. Mataram uma mãe, uma filha, uma amiga. Nossa,
pra mim ela era tudo. Eles [foram dois sobreviventes] falam que eles
pediram muito pra não fazer aquilo. Porque eles se entregaram, sabe? E
mesmo assim eles mataram. Eu ainda vivo porque eu estou nessa luta por
eles. Mas eu não falo nem vida, porque a gente para. A gente não vive
não”.
Durante a visita à comunidade de Pau d´Arco, Thiago Valentim, que
integra a coordenação executiva da CPT, informou aos trabalhadores e
trabalhadoras rurais presentes que, além de prestar solidariedade e
conhecer de perto a realidade da região, a Missão levará o compromisso
de convocar forças para pressionar o Governo Federal, especificamente o
Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], para que dê
celeridade na garantia de terra para a comunidade.
“Jane Júlia de Oliveira, presente!
Oseir Rodrigues da Silva, presente!
Hércules Santos de Oliveira, presente!
Regivaldo Pereira da Silva, presente!
Ronaldo Pereira de Sousa, presente!
Bruno Henrique Pereira Gomes, presente!
Antônio Pereira Milhomen, presente!
Nelson Souza Milhomem, presente!
Weldson Pereira Milhomem, presente!
Weclebson Pereira Milhomem, presente!”
Aos brados, em homenagem aos dez trabalhadores e trabalhadoras
massacrados em Pau d´Arco, teve início o Ato Ecumênico realizado pela
Missão, no município de Marabá. A celebração ecumênica contou com a
presença do bispo de Conceição do Araguaia, Dom Dominique Marie Jean
Denis You.
Familiares dos assassinados estiveram presentes na celebração. Régis
Marcos perdeu sete pessoas da família – dos dez assassinados. “O que
ficou ainda é a dor, o desespero, é o sentimento de revolta, de
injustiça, porque foram dez vidas, dez seres humanos, e só da nossa
família foram sete pessoas. Eu perdi meu irmão, perdi meus dois primos,
meus dois tios e a minha tia. A minha tia aqui presente perdeu dois
filhos que cuidavam dela e hoje em dia, nós, os mais próximos cuidamos
dela, os sobrinhos, as sobrinhas, e alguns irmãos que ainda ficaram,
porque foram dois irmãos dela assassinados”, detalha, revelando a
completa desestruturação familiar.
“Eles tiraram tudo da gente. Tudo. Não só a vida dos nossos
familiares, mas a dignidade da família. A gente não pode ter o direito
de ter um velório digno, ninguém pode se despedir de seus familiares,
ninguém viu eles pela última vez porque o Estado fez a covardia de
assassiná-los e nem os corpos entregaram pra gente. E quando vieram
entregar os corpos pra nós, já estavam todos em estado de putrefação. A
gente não teve o direito de dar o último adeus”, denuncia.
Régis Marcos ressalta que o que eles desejam é justiça. “A gente quer
um grito de liberdade, de todos terem o direito a um pedaço de terra,
de plantar, de cultivar. Porque de quem é a terra? A terra é de quem
quer trabalhar. Aí se resume a meio grupo de latifundiários que se
apodera de tudo e nós voltamos a ser aqueles escravos de tantos anos
atrás. Escravidão acabou? Onde que acabou?”, relativiza.
A necessidade de que as igrejas se posicionem de maneira firme e
constante é apontada pelo Reverendo Luiz Carlos Gabas, integrante da
Missão. “É muito confortável para a Igreja, quando nós só nos dedicamos à
oração, ao louvor, às idas aos templos. E nós precisamos como Jesus
estar no meio do povo, atentos às necessidades do povo, preocupados com a
sorte dos pobres. É uma exigência evangélica. É muito confortável a
gente pensar em uma igreja que prepara as pessoas para a salvação depois
da morte. Igreja tem que se preocupar com a vida das pessoas. O céu tem
que começar aqui. E céu é o que? É terra, é comida, é casa, é saúde,
educação. Então como lideranças religiosas, que a gente se comprometa a
não nos calarmos diante de nenhuma forma de injustiça. Eu vou repetir o
que é muito presente no Movimento Sem Terra. Diante da morte, diante da
violência, nem um minuto de silêncio”, conclama os presentes.
Além das organizações realizadoras e que organizaram a missão,
estiveram presentes durante toda a missão representações da Igreja
Presbiteriana Independente, Igreja Presbiteriana Unida, Aliança de
Batistas do Brasil, Paróquia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana,
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, familiares dos trabalhadores e
trabalhadora assassinados, Conselho Indigenista Missionário, Movimento
de Trabalhadores Sem Terra. Prestaram apoio à missão a Pastoral da
Juventude, irmãs leigas, comunidades eclesiais de base, movimento
estudantil, Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura
regional, Movimento dos Atingidos por Barragens, estudantes de direito a
terra e docentes da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.
Reunião no Ministério Público
Uma
reunião no Ministério Público do Estado do Pará foi realizada, como
forma de incidência junto ao poder público local e para acompanhar o
andamento das investigações do massacre de Pau d´arco. No momento, os 17
policiais envolvidos na chacina estão presos.
Rafael Soares, diretor executivo de Koinonia, pontua que diante do
que foi testemunhado pela missão, é compromisso do FeBrasil levar a
solidariedade, no sentido de evitar ao máximo as reintegrações de posse.
‘Mais de mil famílias estão ameaçadas de despejo ate o Natal, no
período do advento’De acordo com os promotores criminais destacados para
o caso, Alfredo Martins de Amorim e Leonardo Jorge Lima Caldas, é
preciso estar atento e fazer pressão durante o inquérito e julgamento em
júri popular – este último ainda sem data prevista para acontecer. A
estratégia da defesa dos policiais será desqualificar as vítimas para
justificar a conduta dos policiais. “A justificativa vai ser essa, que o
que a polícia fez ali foi uma faxina social, uma benesse para a
sociedade”, explica o promotor Leonardo Caldas.
Os promotores ainda afirmam que um dos fatores que levaram à prisão
dos executores foi o fato da investigação ter sido realizada pela
Polícia Federal, com equipe especializada trazida de fora da região.
“Com o fechamento dessa etapa, a equipe acabou saindo. O inquérito
continua, mas nossa luta é que essa equipe volte para essa segunda
instância. Até porque pra não ficar naquele clichê, os executores foram
identificados, então cumprimos nosso papel, quando a gente sabe, pelo
que ficou apurado, que tem algo a mais nisso aí. Se existem indícios de
que houve um patrocínio, é dever do Ministério Público ir atrás”,
assegura Caldas.
De acordo com dados da Anistia Internacional, um levantamento no Pará
mostrou que trinta dos quarenta municípios do sul e sudeste do Estado
têm taxa de 100% de impunidade em relação aos assassinatos de
trabalhadores e trabalhadoras rurais nos últimos 43 anos.
Acampamento Hugo Chávez
Aproveitando a presença na região, a Missão Ecumênica Pau d´Arco não
poderia deixar de conhecer de perto a problemática de desapropriações de
terra no Sul e Sudeste do Pará. Um total de 1200 famílias serão
despejadas de suas casas só neste mês de dezembro. No acampamento Hugo
Chávez, a 40 km do município de Marabá, serão 300 famílias expulsas de
suas residências.
A Fazenda Santa Tereza [onde se estabeleceu, há três anos, o
Acampamento Hugo Chavéz] é, supostamente, de propriedade de Rafael
Saldanha. Supostamente porque há indícios de que a fazenda localiza-se
em terra pública e tenha sido grilada pela família Saldanha. “Então, não
estamos em área particular, estamos em terra pública, área do Estado,
área que deveria ser destinada à reforma agrária para assentar essas
famílias que não tem terra e que não tem condições de comprar essa
terra”, esclarece a pedagoga e acampada Polliane Soares.
Em negociações entre o Incra e a família Saldanha, o órgão público se
dispôs a comprar a área por 8 milhões, mas o fazendeiro Rafael Saldanha
não aceitou. A partir desse momento foi arquivado o processo de
negociação da área e foi pedida a reintegração de posse, protocolada em
outubro do ano passado. Agora a reintegração está marcada para daqui um
mês, em 13 de dezembro de 2017.
A acampada Polliane Soares conta que a convivência com os
proprietários da fazenda nunca foi pacífica. “Em 2014, quando da
ocupação, nós tivemos vários períodos de ataques constantes da
pistolagem da fazenda. Tivemos nossas roças queimadas, incendiadas.
Agora, em 2017, a gente teve um episódio em julho, quando a mando do
fazendeiro os pistoleiros atearam fogo nas nossas roças, passaram
atirando na frente do acampamento e atearam fogo ao redor dele, com o
intuito de queimar as famílias que vivem aqui. Nós já tivemos episódios
de perder nossos barracos, de pistoleiros entrarem à noite no
acampamento e atearem fogo no barraco com as famílias dentro, e aí a
pessoa acordou no meio da noite com o barraco pegando fogo, saiu
correndo, deixando tudo pra trás, documentos, todos os pertences”,
rememora.
Polliane denuncia também que o inclusive o direito de ir e vir dos
acampados e acampadas têm sido impedido, já que os pistoleiros têm
abordado os trabalhadores e trabalhadoras na estrada que dá acesso à
cidade de Marabá e intimidado os assentados da região a não darem
trabalho para os trabalhadores e trabalhadoras do Hugo Chávez.
“Como professora, eu me sinto muito triste, angustiada. O Hugo Chávez
é nossa moradia, de onde tiramos nosso sustento, da nossa horta
mandala, nossas roças. Enquanto acampada eu pretendo lutar até o último
momento. Enquanto educadora, eu acredito que não é porque a gente é
acampado, que a gente não tem direito à dignidade para nossas crianças.
Nós não trabalhamos só com educação primária, nós trabalhamos com a EJA
também. Nos temos à noite cerca de 70 alunos na EJA”, descreve a
professora Maria do Socorro. Entre crianças, jovens e adultos, a escola
atende 150 pessoas.
Em reunião com as famílias do Hugo Chávez, Sônia Mota, diretora
executiva da CESE, se lembrou de quando a CESE esteve presente na
região, em 1996, quando do massacre de Eldorado dos Carajás. “Desde lá
caminhamos em Missão Ecumênica, porque acreditamos que as igrejas são
conclamadas, sim, a estar do lado do povo e do povo pobre, porque o
Cristo que acreditamos nunca deixou de lado o povo pobre, aliás, era a
sua plataforma de missão”, afirma.
E prestou solidariedade e esperança na luta pela terra. “O povo do
acampamento Hugo Chávez não está só. Nós acreditamos, sim, que tem terra
e tem terra pra todo mundo. E terra é pra quem planta, terra não é pra
ficar parada para os grandes latifundiários ganharem dinheiro com ela. O
sangue das pessoas que tem caído nessa terra tem que regar a nossa
esperança e a nossa luta, porque a luta de vocês é a nossa luta também.
Porque se o campo não planta, a cidade não come”, brada Sônia Mota.
Fazendo uma referência bíblica, a diretora executiva da CESE se
remete ao momento em o povo do Egito precisou fugir da condição de
escravos no Egito e se deparou com o mar. “Quando chegaram diante do mar
e o povo ficou com medo, o que foi que eles ouviram? ‘Diga ao povo que
marchem. E é em marcha que o MST tem feito a reforma agraria nesse país.
É em marcha que a gente caminha. É em marcha que essa Missão Ecumênica
vem e está disposta a continuar marchando com vocês e tentando fazer
aquilo que a gente pode, amplificar essas vozes que lutam por justiça”.
A pedagoga e acampada Polliane pede que as pessoas que entrarem em
contato com essa realidade, se sensibilizem e somem forças para que o
despejo não aconteça. “As famílias que aqui estão não têm para onde ir,
não têm casa, não têm trabalho na cidade. As crianças que aqui estão não
conseguirão cumprir os 200 dias letivos, que é garantido na
Constituição. As famílias vão perder a produção. Eu tenho filha, o
sofrimento que eu tenho é de outras famílias aqui. O desespero de não
saber pra onde ir. O desespero de saber que vai ser jogado fora”,
desespera-se.
E finaliza: “Nós vamos ter um total de 1200 famílias despejadas de
suas casas agora em dezembro. 591 crianças fora da escola. Em torno de
cem toneladas de alimento destruídas. Estamos contando com a
solidariedade de muita gente nesse momento de dificuldade. Que as
pessoas possam pensar, quando estivessem nas suas casas, numa noite
chuvosa, quentinhas, com um prato de comida para os filhos, onde estarão
as outras pessoas? Que não esqueçam que vão ter 1200 famílias do sul e
sudeste do Pará que não vão ter essa condição”.
Fonte: Koinonia
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