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terça-feira, 31 de outubro de 2017

A reforma protestante, 500 anos depois

por Magali do Nascimento Cunha* publicado 31/10/2017 01h00, última modificação 30/10/2017 10h52
 
Cinco séculos atrás, Martinho Lutero pregava suas 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg. O que mudou desde então? 
 
 
Nesta terça-feira, 31 de outubro, igrejas protestantes em todo o mundo celebram os 500 anos da Reforma Protestante. Esse dia ficou conhecido como aquele em que o monge alemão Martin Luther teria pregado suas 95 teses na porta da igreja do castelo da cidade alemã de Wittenberg. Elas representavam uma tomada de posição contra o que Lutero considerava práticas abusivas do clero católico romano, como a venda de indulgências (uma forma de perdão dos pecados), e posições doutrinárias que desviavam dos valores primeiros da fé cristã.


Martinho Lutero não foi o único. Houve muitos outros europeus, homens e mulheres, que se notabilizaram como “protestantes”, aqueles que traziam a dimensão contestatória à fé cristã, própria do cristianismo, num chamado ao retorno às origens (perdidas) do ser cristão.

Do século XVI para cá, a reforma marcou a história, tanto da Europa quanto dos demais continentes, por meio da atuação de missionários luteranos, reformados (congregacionais, presbiterianos), batistas, metodistas, anglicanos/episcopais. No século XX surgiram os pentecostais, expressão de um movimento de protesto e afirmação da população negra, migrante, feminina e pobre nos Estados Unidos.

Aspectos críticos desta memória como a cumplicidade do protestantismo com o capitalismo e também com o imperialismo (das ocupações coloniais da África, da Ásia e da Oceania) são abordados por vários estudiosos.

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Por outro lado, a história destaca a contribuição de protestantes em ações pela justiça social e os direitos humanos como os movimentos de promoção da paz durante guerras. Também contra o racismo, como as lutas pelos direitos civis, com o pastor batista Martin Luther King, e contra o apartheid na África do Sul, lideradas pelo metodista Nelson Mandela e pelo bispo anglicano Desmond Tutu, entre outras causas. E ainda nas frentes por democracia e em oposição a regimes de exceção, como os protestantes no Brasil, Chile, Uruguai e Argentina.
No Brasil, a diversidade é enorme, são muitos os grupos confessionais, desde os mais vinculados às raízes da reforma, aos que advêm do pentecostalismo do século XX até aos que emergem dos novos movimentos evangélicos das últimas décadas, denominados neopentecostais.

Desde os anos 2000, os protestantes (historicamente identificados como “evangélicos”) têm adquirido mais visibilidade no espaço público brasileiro. O crescimento numérico e geográfico, principalmente dos pentecostais é responsável por isto, juntamente com a ampliação de presença nas mídias e na política partidária.

Esta visibilidade intensa é fonte de afirmação social dos evangélicos que há poucas décadas eram uma minoria religiosa silenciada. Ao mesmo tempo, é motivo de apreensão e suspeita de quem vê este segmento religioso como uma ameaça por conta do que é veiculado nas mídias e nas propostas políticas: espiritualização de males sociais, submissão da mulher, controle do corpo e da sexualidade, defesa de vingança contra praticantes de crimes, do uso de armas mortíferas para a defesa da população, entre outros.

Soma-se a esta imagem negativa, o destaque dado por algumas igrejas à questão financeira, à busca de benefícios materiais pelos fiéis somada à retribuição na forma de ofertas em dinheiro. Também, algumas ações missionárias com indígenas que negam as suas culturas e lutas por direitos. Ainda, a demonização de outros grupos religiosos promovida por certas lideranças, especialmente contra as religiões de matriz africana e também contra católicos e islâmicos.

Se formos rigorosos numa avaliação ética e teológica, podemos dizer que estas práticas, que acabam se tornando “sinônimos” de evangélicos, vão todas na contramão, não só dos princípios da reforma, mas dos princípios cristãos de justiça, misericórdia e liberdade.

É preciso, no entanto, reconhecer que esta imagem negativa acaba apagando outras muito positivas e bonitas da presença dos evangélicos no mundo e no Brasil: desde projetos de promoção humana e valorização da vida (superação da pobreza, recuperação de indivíduos com dependência química, inclusão para crianças, adolescentes e jovens das periferias das cidades e do País), movimentos pelo Estado de Direito, pela Justiça de gênero.

Entre estas ações também podemos citar a valorização de quem é invisível socialmente. Como o cidadão que durante a semana é auxiliar de serviços gerais ou da construção civil e no momento de estar numa igreja se empodera, veste um terno ou um vestido elegante e se torna pregadora do Evangelho, líder de oração ou cuida da educação religiosa de crianças. Quem não conhece estas experiências não tem medida do que isto significa para a autoestima e a dignidade humana. E é uma das mais ricas heranças da Reforma Protestante: o sacerdócio de todos os crentes. Todos têm um lugar no serviço relacionado à fé.

E aqui chegamos a um ponto crucial desta memória: lembrar os 500 anos da Reforma Protestante deve ser oportunidade para a busca de novas reformas. Um dos lemas dos reformadores do século XVI era “Igreja reformada sempre se reformando”. Eis aí um chamado à vocação de protestar, contestar o que vai contra os princípios de fé e os valores coerentes com o Evangelho de Jesus de Nazaré.

Fonte: Carta Capital

* Magali do Nascimento Cunha: Jornalista, doutora em Ciências da Comunicação, professora e pesquisadora em mídia, religião e cultura da Universidade Metodista de São Paulo. É colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas. Escreve às quintas-feiras 

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