Por Tony Vilhena - Cientista Político
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Belchior
(1976) cantava em “Alucinação”: “Mas
eu não estou interessado em nenhuma teoria
/ Em nenhuma fantasia, nem no algo mais / Amar
e mudar as coisas me interessa mais”
(grifo nosso).
Em
tempos de negacionismo científico, onde considerável número de
pessoas à luz do dia, conversando no sofá da sala ou teclando em
seus celulares, parecem orgulhosas com sua ignorância na rejeição
ao uso de vacinas ou na contestação de que a ação humana
irresponsável tem contribuído para a crise climática, é bom
negritar que, evidentemente, Belchior não é um desses energúmenos.
Cantar
com Belchior o nosso desinteresse por teorias é questioná-las. Até
que ponto elas realmente se preocupam com a vida das pessoas? As
pessoas impactadas por estas teorias têm participação no processo?
A quem a teoria vai servir? Se estas perguntas não têm respostas
satisfatórias, para tudo.
“A
filosofia da ciência é tão
útil para os cientistas como ornitologia é para os pássaros”.
Esta frase, atribuída ao físico Richard Feynman, já se tornou
clássica quando se reflete sobre a (in)utilidade da filosofia,
incluindo a epistemologia, para o empreendimento de pesquisas e seus
desdobramentos.
Antes de comentar nossa impressão sobre a frase, já que se falou de
pássaros, precisamos relembrar que a academia, este lugar
privilegiado da pesquisa científica, é metaforizada como uma
gaiola. Sim, uma gaiola cômoda, bem arejada, até espaçosa, com
comida a vontade, admirada por quem olha de fora e contempla o jeito
faceiro de quem está lá dentro, mas sem a liberdade do céu.
Destaca-se aqui a reflexão de doutor em matemática Ubiratam
D’ambrosio (2018, p. 199), que informa que:
Durante alguns anos, tenho
utilizado o conceito de “gaiola epistemológica” como uma
metáfora para descrever sistemas de conhecimento. O conhecimento
tradicional é como uma gaiola de pássaros. Os pássaros na gaiola
comunicam-se numa linguagem somente conhecida por eles. São
alimentados com o que está na gaiola, voam apenas no espaço da
gaiola, veem e sentem apenas o que as grades da gaiola permitem. Eles
se repetem, reproduzem e procriam. Mas não podem ver a cor exterior
da gaiola. Uma situação semelhante pode acontecer com os estudiosos
especializados. Os estudiosos na gaiola desenvolvem seu próprio
jargão e aderem a padrões metodológicos e ontológicos rigorosos.
Superar a mesmice acadêmica é um grande desafio. É frequente ver
pesquisadores subordinando os seus alunos a temas propostos pelos
orientadores, restringindo o seu espaço para a criatividade.
Independente de confirmação de autoria de Feynman, que inclusive
ganhou o Nobel de Física, em 1965, pelos seus estudos de
eletrodinâmica quântica, a frase do início contém uma provocação
do desejo da objetividade prática do fazer científico, em desprezo
ao questionamento sobre os efeitos sociais, éticos e estéticos que
deveriam balizar o percurso das pesquisas.
Dessa forma, a tendência de distanciamento entre academia e
sociedade se consolida. Pois, com o afastamento da problematização
oriunda das epistemologias que levantam os porquês norteadores e
preocupações com os produtos gerados, restará o pragmatismo
acadêmico sustentado pela pretensão de que os cientistas sabem o
que é melhor para a sociedade e sabem quais são os conhecimentos
válidos e interessantes.
Lógico, é notável o reconhecimento que essa forma consagrada de
fazer ciências obteve, com vários avanços em todos os ramos do
conhecimento. Inclusive, a palavra consagrada vem a calhar, porque a
ciência, cheia de si própria, chegou a conceber o fim da religião,
alegando que esta explicava o mundo pelo encantamento, logo, era um
conhecimento que não passava pelo crivo do método, da experiência,
do laboratório e de sua pseudoneutralidade.
[…] con el advenimiento de
la visión científica del mundo, incluso los valores pudieron ser
sometidos a la observación empírica, a la medición matemática y a
la prueba. Enfatizó que con este desarrollo la ciencia se ubicó
como la oposición más fundada a todas la visiones religiosas del
mundo, las cuales, en tanto postulados éticos, afirmaban la “falta
de sentido” de la vida mundana y de ciertas acciones, como
resultado de su valoración de los caminos particulares de salvación.
(KALBERG, 2005, p. 110).
Ou como argumenta Echeverri (2004, p. 04):
El racionalismo omniabarcante
y desdoñoso de otros saberes, no podía aceptar que el mundo mítico
estuviera en el mismo plano del mundo tecnocientífico. El
acontecimiento más importante de la modernidad fue, por tanto, el
abandono que el hombre hizo de los dioses, del mundo de lo sagrado,
del mundo de lo mítico, del mundo de lo poético — de la
posibilidad de expresión del ser como poético— para pasar al
mundo de lo calculado, de lo exacto, de lo explicable racionalmente,
del mundo amputado, precisado, despoetizado, desencantado.
A ciência e seu racionalismo eram o novo sagrado, com devotos
empedernidos (pesquisadores/as), templos concorridos (universidades),
livros sagrados (periódicos) e deuses para a adoração (cientistas
de renome). Contudo, o século XX passou, a religião se reinventou e
está mais vigorante do que nunca, para o mal e para o bem, e quem
hoje está para ser superada é aquela ciência.
Neste ensaio, abordaremos algumas críticas feitas à ciência
tradicional e possibilidades de um novo paradigma para o fazer
científico.
CINEMA
E SUPERAÇÃO DO PARADIGMA CIENTÍFICO
O presente trabalho é escrito num momento histórico do cinema, onde
duas histórias diametralmente opostas levam multidões às salas:
Barbie e Oppenheimer. Em alguns casos, cinéfilos assistem os dois
filmes em seguida. O filme da Barbie (2023), apesar de ser uma
história fictícia, baseada numa boneca loira e fútil, altamente
lucrativa para seus fabricantes, apresenta com humor questões atuais
sobre feminismo, enfrentamento ao patriarcado e a importância da
união das mulheres, numa desconstrução da personagem original. Já
o filme Oppenheimer (2023) trata do cientista que coordenou o
laboratório que criou a bomba atômica nos EUA. Os dois filmes
trazem reflexões epistemológicas sim, e por que não?
A reviravolta de Barbie, de uma boneca com estereótipos comportamentais (preocupação com maquiagens, sem trabalhar fora de
casa, heterossexual, etc.) e de aparência que impunham um padrão de
beleza (branca, loira, magra, alta) para uma mulher empoderada, que
mobiliza as demais mulheres na luta contra o patriarcado, quando Ken
usurpa o poder na Barbilândia, pode bem representar a reviravolta na
perspectiva científica que temos hoje. Visto que a ciência moderna
se notabilizou em acender marcadores que separam o conhecimento
(importante, validado) e o senso comum (marginal, apriorístico), bem
como, em criar padrões técnicos de abordagem que fortaleceram
visões de mundo de quem se impôs no poder político-cultural pela
força e depois se manteve pela ideologia.
[...] tem de compreender os
fenômenos sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os
agentes conferem às suas ações, para o que é necessário utilizar
métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos
deferentes dos correntes nas ciências naturais, métodos
qualitativos em vez de quantitativos, com vista à obtenção de um
conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensível, em vez de
um conhecimento objetivo, explicativo nomotético. Esta concepção
de ciência social reconhece-se numa postura antipositivista e
assenta na tradição filosófica da fenomenologia e nela convergem
diferentes variantes [...]. Contudo, numa reflexão mais aprofundada,
esta concepção, [...] revela-se mais subsidiária do modelo de
racionalidade das ciências naturais do que parece. Partilha com este
modelo a distinção natureza/ser humano e tal como ele tem da
natureza uma visão mecanicista à qual contrapõe, com evidência
esperada, a especificidade do ser humano. [...] ambas as concepções
de ciência social pertencem ao paradigma da ciência moderna, ainda
que a concepção mencionada em segundo lugar represente, dentro
deste paradigma, um sinal de crise e contenha alguns dos componentes
da transição para outro paradigma científico (SANTOS, 2000, p.
65-67).
A crise da ciência moderna ocorre porque na atualidade, a
mobilização coletiva para a incidência política de segmentos
sociais excluídos e a utilização de recursos de disseminação de
informações e criação de redes pela Rede Mundial de Computadores
pressionaram a academia para pautas outras como direitos de minorias,
democracia participativa, questões identitárias e efeitos das
mudanças climáticas. Nessa conjuntura, ecoou como denúncia o
distanciamento entre o foco das universidades e os interesses e
demandas da sociedade, do mundo real. O contato da academia com a
sociedade por muitas vezes estava sendo realizado apenas para
garantir a validade de um experimento, comprovar uma tese, vencer uma
licitação em busca de recursos. A sociedade para esta perspectiva
acadêmica é um objeto, por isso, muitas vezes, nem merece o devido
retorno.
[…] o que quer que falte
concluir da modernidade não pode ser concluído em termos modernos
sob pena de nos mantermos prisioneiros de mega armadilhas que a
modernidade nos preparou: a transformação incessante das energias
emancipatórias em energias regulatórias. Daí a necessidade de
pensar em descontinuidade em mudanças paradigmáticas e não
meramente sub paradigmáticas (SANTOS, 2000, p. 93).
Por sua vez, em Oppenheimer temos um drama sobre um cientista que
liberou uma equipe de trabalho para o desenvolvimento de armas
nucleares. É a ciência a serviço da guerra, a serviço de quem
paga mais sem se importar para a finalidade. As famosas e trágicas
bombas lançadas pelos EUA nas cidades japonesas de Hiroshima e
Nagasaki, em agosto de 1945, na Segunda Mundial, contaram com a
participação de Oppenheimer e sua equipe de cientistas.
Arrependido, Oppenheimer, que era antifascistas e tinha inserção
com setores comunistas, empenhou-se até a morte em iniciativas de
controle de armas nucleares e divulgação de ciências.
Claro, das ciências para as guerras
também obtivemos avanços tecnológicos que usamos no dia a dia
(radares, GPS, computadores, alimentos de preparo instantâneo,
medicamentos analgésicos e antibióticos, veículos, etc.) e um
aparato de segurança e resoluções diplomáticas de política
internacional que visam intimidar que conflitos se resolvam
diretamente com tanques, tiros e mortes. Oppenheimer é o
modelo de cientista da ciência moderna. Do seu laboratório, bate
continência para quem lhe paga e só cumpre a missão. Militarismo e
cientificismo são discursos complementares para justificativa de
autodefesa e domínio do outro.
Sob
a bandeira do progresso científico e da modernidade foram
justificados ao longo da história genocídios por meio de discursos
de eugenias e a destruição da natureza que foi colocada à
disposição do homem possibilitando ignorar consequências éticas e
até mesmo de sobrevivência desde que embasados por métodos
racionais e quantificáveis. Na medida em que a ciência avançou
surgiram questionamentos acerca de conquistas e retrocessos que a
razão iluminista proporcionou, questionamentos quanto aos seus
métodos foram respondidos com novas formas de interpretação e
métodos, da investigação empírica de Francis Bacon ao método
racional de René Descartes, com o positivismo de Augusto Comte à
dialética marxista (GOMES;
MARTINEZ-ÁVILA; VALENTIM, 2018, p. 223).
De Oppenheimer a Barbie, do boom do
produtivismo acadêmico que levou milhares de pessoas a escreverem
textos que ninguém leu a era do ChatGPT
que leva milhares de pessoas a lerem textos que ninguém escreveu,
compreendemos haver uma transição ou mudança de paradigmas, onde a
discussão entre hard sciences
e soft sciences estão
na fila da padaria, no boteco do “copo sujo” ou em debates
acalorados, usando caixa alta, em redes sociais.
EPISTEMOLO(R)GIAS, O QUE SERIA ISSO?
Cantem conosco:
Uh-uh-uh-uh-uh-uh, ah-ah / A
novidade veio dar à praia / Na qualidade rara de sereia / Metade o
busto, d'uma deusa Maia / Metade um grande rabo de baleia / A
novidade era o máximo do paradoxo / Estendido na areia / Alguns a
desejar seus beijos de deusa / Outros a desejar seus lábios prá
ceia (GIL; VIANNA; BARONE, 1986).
Quando Os Paralamas do Sucesso e Gilberto Gil
surgiram cantando essa canção na metade da década de 1980, um
intelectual português já vinha interpretando essa novidade
paradoxal da época, trata-se de Boaventura de Sousa Santos, que, em
1987, lança a obra “Um Discurso Sobre as Ciências”.
Sobre a perspicácia de Santos, a professora
Ivanilde Apoluceno de Oliveira (2016, p. 102-103) disserta:
Santos
(1997) ressalta que são fortes os sinais de que a racionalidade
moderna está em crise: (1) é uma crise profunda e irreversível;
(2) vivemos um período de revolução científica iniciada com
Einstein e com a mecânica quântica, que não se sabe quando
terminará; (3) e que só é possível especular sobre o paradigma
emergente deste período revolucionário. […] Considera Santos
(1997) que estas condições teóricas de crise provocam várias
reflexões epistemológicas sobre o conhecimento científico com duas
facetas sociológicas: (1) reflexão pelos próprios cientistas que
adquiriram uma competência e um interesse filosófico para
problematizar a sua prática científica; (2) reflexão sobre
questões sociológicas, do domínio da sociologia da ciência, entre
as quais: análise das condições sociais, dos contextos culturais,
dos modelos organizacionais da investigação científica. As
condições sociais estão pautadas na crítica às ideias da
autonomia da ciência e da não neutralidade do conhecimento
científico, que perante o fenômeno global da industrialização da
ciência entraram em colapso, pelo vínculo com o poder econômico,
social e político, tanto em nível de aplicações da ciência
quanto ao nível da organização da investigação científica.
Mas, dentro dessas contradições apontadas,
quem diria que por conta dessas mudanças de paradigmas que a
“novidade” traz, do moderno para o emergente, hoje, quase deixo
de citar o professor Santos porque ele está respondendo a várias
acusações de assédio sexual de suas alunas. Lógico que a
provocação da Epistemolo(r)gias não é por causa desse comportamento nojento de assédio.
No entanto, na constituição de um novo
paradigma científico, o emergente, interessa-nos sim saber o que
acontece nos bastidores dos laboratórios, sobre o que cientistas
postam nas redes sociais, se um senhor de idade teve a audácia de
usar seu prestígio e seu poder de professor para obter vantagens
sexuais de suas alunas, como no caso de Boaventura Santos. Claro, que
se defenda, pois é um direito básico. Porém, não podemos olvidar
da situação de exposição e constrangimento das vítimas e
negligenciá-las.
Estamos diante de um Mancala*
metodológico, pois o reconhecimento de uma obra/teoria e a
utilização de autores/as para dialogar como os problemas que nos
levam a pesquisar interferem diretamente no alcance dos objetivos da
investigação que nos propomos. Logo, reconhecemos ser de difícil
decisão a escolha por usar a teoria de Santos, ainda mais se
comprovadas forem as acusações, pois é de notoriedade
internacional seu legado intelectual para as ciências. Até
poderíamos substituí-lo por autorias mais recentes, não europeias,
conforme já estava em andamento num processo “natural” da vida
universitária, mas não pode ser um mero “cancelamento”.
Para a ciência tradicional não interessava
para quem o cientista estava a serviço, se se alimentava de comida
vegana ou não, se tinha ido para passeatas LGBTQIA+ ou não, se
nutria simpatia por fascistas ou não, desde que realizasse seus
experimentos e apresentasse seus relatórios dentro dos prazos de
publicação. E assim passavam os calendários acadêmicos, entre
canapés e bebidas chiques nas recepções de eventos acadêmicos
elitistas, palestras entediantes proferidas com palavras
incompreensíveis para um cidadão médio e mobilizações para
melhorias de salários e financiamento de pesquisas.
A coruja, mascote da Filosofia, representa a
epistemologia da modernidade. Sua origem é europeia. Não ignoramos
sua capacidade de olhar de longe com seus olhos grandes, até no
escuro, tendo um pescoço com rotatividade de quase 360 graus, seu
voo é silencioso e quase sempre certeiro sob as presas. Mas é
superestimada. A coruja vive pra si, preocupada com a afiação de
suas garras e maciez de sua plumagem, fica lá no alto, arrogante, só
se aproxima de outro ser quando lhe interessa para a refeição. Até
seus ninhos são invasões nos ninhos de outras aves.
Queremos propor outra ave para representar uma
outra epistemologia: o urubu. Sim, o urubu. Sua origem é nas
Américas. Além de excelente visão, ele também desenvolveu o
olfato para poder viver, ou seja, sente o (mal) cheiro das coisas
mesmo que esteja muito longe e sem ter necessidade de ver o que está
acontecendo. Ele voa bem, e vive plainando, mas também pisa no chão,
se mistura com outros bichos, sente o calor do dia a dia. Não recebe
a mesma atenção que as outras aves recebem, mas mesmo assim não
deixa de cumprir seu trabalho que é de extrema importância. Falando
nisso, aproveitamos para mandar um salve
para os urubus do Ver-O-Peso, em Belém/PA.
Sobre essas perspectivas de produção e
compreensão do conhecimento, compreendemos que
un saber
que, con base en el discernimiento del conflicto entre los modelos de
interpretación de la realidad, se articula en los movimientos
sociales alternativos y liberadores, y de esta forma se integra a un
plan o proyecto para realizar esas otras realidades que hoy parecen
imposibles. Dicho en otros términos, se trata de un saber de
realidades que sabe intervenir en el curso de la historia en nombre
de lo que se ha negado como realidad posible. Pues la esperanza, las
memorias reprimidas, la utopía, son parte de la realidad que podemos
hacer (FORNET-BETANCOURT, 2009, p. 640).
Ademais, o pensamento não é um ato executado
por mero interesse ou necessidade imediata. Todos nossos sentidos nos
fazem pensar, mas os pensamentos não retornam integralmente ao mundo
dos sentidos, nem mesmo que busquemos ter intenção e preparo de
comunicá-los. As instituições legitimadas como espaço para a
produção de conhecimento, escola e universidade, submetem os
indivíduos a uma sobrecarga de informações, mas não conseguem
acompanhar a contento as respostas cognitivas individuais, que
poderiam reformatar as primeiras informações fornecidas. Elas
cobram, em avaliações evasivas, que os indivíduos apenas a repitam
as informações primeiras, desprezando a capacidade de desconstrução
e reconstrução cognitiva do que foi repassado.
Talvez seja angustiante, após séculos de
tentativas de erguimento da ciência moderna, conceber que ela está
em esgotamento diante de outras possibilidades e ofertas de recursos
para a produção do conhecimento científico. A Epistemolo(r)gia que
falamos tem a ver com grau de desordem no cenário contemporâneo.
Visto que, foram retiradas as pomposas vestimentas das ciências
modernas, enquanto as roupas do novo paradigma ainda estão sendo
costuradas, assim se viram nus no salão, estabelecendo uma relação
de tesão e tensão festiva, de intercruzamento e interpenetração.
O aspecto positivo é
representado pela ampliação das linhas de investigação, pela
diversificação teórico-metodológica e pela utilização das mais
variadas fontes de pesquisa. Mas, segundo alguns estudiosos, o que
houve foi, na verdade, uma fragmentação epistemológica e temática
que tem dificultado a compreensão da totalidade do fenômeno
educacional. Mas ainda, estes estudiosos veem, nessa crise
paradigmática, um movimento antimarxista e o abandono da perspectiva
histórica. É justamente nesse momento que são privilegiados temas
como cultura escolar, formação de professores, livros didáticos,
disciplinas escolares, currículo, práticas educativas, questões de
gênero, infância e, obviamente, as instituições escolares
(NOSELLA e BUFFA, 2008, p. 16).
Não tratamos a desordem como algo negativo,
pelo contrário. A desordem desloca os/as participantes do ambiente
numa ciranda que esmaece a separação de papéis, permitindo que
quem era apenas coadjuvante ou figurante da cena possa alcançar o
protagonismo. Temos uma maior complacência metodológica, com uma
gama incontável de técnicas, recursos e abordagens de pesquisa. Com
isso, não se perdeu o rigor analítico, mas se ganhou em
complexidade das teias performáticas do campo de pesquisa. Em suma,
temos o paradigma científico emergente:
Há a
superação do dualismo existente entre as ciências naturais e as
ciências sociais e a proximidade entre as duas ciências tende a
valorizar os estudos humanísticos. […] O conhecimento é total,
pois tem como horizonte a totalidade universal, mas também é local,
ou seja, tende a superar a parcelização e a disciplinarização do
saber científico. A disciplinaridade é substituída pelos temas,
que possibilitam o encontro com outros conhecimentos. […] O
conhecimento científico é multireferencial. […] O conhecimento
científico é auto-referencial, auto-biográfico e não separa
sujeito do objeto. É mais contemplativo (reflexivo e estético) do
que ativo (experimental). Ensina a viver e traduz num saber prático.
[…] O conhecimento científico não é o único considerado válido,
sendo necessário dialogar com as outras formas de conhecimento, bem
como transformar o seu conhecimento em sabedoria de vida (OLIVEIRA,
2016, p. 104-106).
CONSIDERAÇÕES FINAIS POR MAIS EPISTEME E MAIS ORGIA
|
Obra: Rede na RBA, da artista visual Katianne de Sousa Almeida |
Episteme, do grego, significa conhecimento. Orgia é culto, festa, ritual à Dionísio, uma divindade do panteão grego.
Populações tradicionais, indígenas,
quilombolas, têm conquistado espaços na sociedade e nas pautas das
políticas públicas. São conquistas advindas após muita luta e
resistência. A universidade pública, que em parte relutou em
recebê-los através das cotas, agora está mais plural e colorida.
Contudo, as rotinas acadêmicas ainda mantêm vícios do elitismo
burguês que contribuem para o constrangimento e até para
desistência de estudantes.
Entre os principais entraves, gostaríamos de
destacar o ambiente e as relações acadêmicas que celebram o
eurocentrismo e desprezam saberes outros; valorizam histórias e
datas dos colonizadores e invisibilizam histórias e personalidades
dos povos que foram explorados; congratulam-se por trabalhos que
contam sobre,
mas não se dispõem a fazer trabalhos com
estas populações, ficando mais confortável tê-los com objetos que
sujeitos.
Entretanto,
aliando-se e fortalecendo o movimento por uma nova ciência, tendo
como lastro a riqueza dos modos de produzir conhecimento que esses
povos têm, podemos ampliar o leque de possibilidades e descobertas
científicas que respondam ao interesse comunitário, das camadas
trabalhadoras e de setores excluídos.
Outro foco
relevante tem a ver com a mudança de perspectiva sobre o meio
ambiente e o uso de recursos naturais. Se a ciência moderna,
paradigma dominante, visava a capacitação das pessoas para explorar
o máximo da natureza, sem preocupação que os recursos são
esgotáveis, agora, sob o novo paradigma, sociedade e natureza são
tratadas como partes integradas.
Essa transição
entre paradigmas, onde ser vê complementaridades e conflitos entre
as duas partes, dominante e emergente, gerando uma sensação de
desordem e temor de não conseguir atravessar adequadamente a ponte
que liga o real e o intelecto que precisa acessá-lo, elaborar uma
compreensão e desenvolver uma apresentação da jornada, permite que
agentes que antes não tinham vez ou no máximo eram apenas objeto
estudado possam tomar a frente e reivindicar seu espaço de
protagonistas, espaço de “amar e mudar as coisas”. (BELCHIOR,
1976).
* Jogo africano de tabuleiro.
REFERÊNCIAS
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Margot Robbie et al. EUA: Warner Bros. Pictures, 2023.
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Alucinação.
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