quinta-feira, 27 de julho de 2017

As Mulheres e a Reforma: falemos das bruxas! [Por Nancy Cardoso]


Nesses 500 anos da Reforma Protestante temos insistido em fazer uma releitura inclusiva para que as narrativas não sejam todas no masculino plural.

Este é um esforço necessário e importante que fazemos… MAS existe um outro lugar de memória sobre as mulheres e a Reforma protestante: o lugar nada confortável das “bruxas”



“A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la.”

Quem nos disse a frase foi Eduardo Galeano … e as aprendizagens necessárias da crítica feminista precisam desvelar as narrativas fáceis e dóceis e fazer das ferramentas da história parte importante de conhecer a realidade para modificá-la. Falemos sobre elas: as bruxas!
Anoto aqui algumas leituras e socializo traduções provisórias acreditando que um dia poderemos conversar com mais qualidade de tempo e coragem sobre isso.

Primeira leitura:

“Eu quero ser o primeiro a pôr fogo nas bruxas”, disse Lutero sobre as bruxas num contexto de crescente mania de perseguição à bruxaria no século XVI. Lutero não foi o único que demonstrou tal zelo. Um número sem fim de fogueiras queimaram em todo o país. Milhares de pessoas, a maioria mulheres, perderam a vida. Mas Lutero foi realmente pioneiro na perseguição de bruxas?

Martinho Lutero viveu no mundo do final da Idade Média, Lutero estava enraizado no clima intelectual de seu tempo e a partir daí ele criou algo totalmente novo.

A igreja deveria reabilitar as bruxas?

Somente na Alemanha, 25.000 mulheres e homens morreram depois de processos duvidosos. Durante meses, um grupo de trabalho lidou com este tema da reabilitação das bruxas – é um tópico para o ano de Lutero 2017. (tradução de trechos: Martin Luther and the witches)

Segunda leitura:

A caça às bruxas estava irrevogavelmente ligada à Reforma Protestante. Ambos os países católicos e protestantes se ocuparam do combate de bruxarias e rituais pagãos mas, sem dúvida, os casos aumentaram em número durante o período crucial da Reforma – a segunda metade do século XVI. James Sharpe afirmou que a feitiçaria operava “dentro do contexto da reforma e contra-reforma”.

[I] A feitiçaria não se tornou um fator importante na vida das pessoas até a Reforma e desapareceu à medida que a situação religiosa em toda a Europa se estabilizava. Na Inglaterra, por exemplo, a última pessoa executada para bruxaria foi Jane Wenham em 1712. [ii] Esta foi uma época em que a Inglaterra foi estabelecida e unificada com a Escócia.

Em alguns países católicos, como Itália, Espanha e Portugal, houve relativamente poucos casos de perseguição de bruxas. No entanto, o Papa Sixto IV sentiu que o perigo era suficiente para garantir que se aprovasse uma Inquisição para lidar com os casos [Iii] . Enquanto a Igreja de Roma tinha um poder incoteste os casos eram tratados localmente e sem alardes.

No período posterior, a partir da Reforma Protestante, com o poder escorregando lentamente, foi importante assumir uma batalha explícita como forma de afirmação da liderança sobre a Europa cristã.



A Inquisição num primeiro momento se ocupou mais com judeus e mouros na Espanha, mas ampliou sua ação incluindo a heresia da bruxaria a partir das iniciativas protestantes. Na Espanha em particular, as bruxas foram definidas pela Inquisição como uma expansão do entendimento de heresia. [Iv] A heresia já não era apenas definida como a não crença católica (ou protestante), mas também como aqueles/as que pareciam diferentes e uma ameaça ao domínio da crença e do saber, como bruxas.

De acordo com Merry Wiesner, os espanhóis apenas mataram um punhado de bruxas, os portugueses apenas um e os italianos nenhum. [V] Muitos dos países católicos estavam no sul da Europa, e a bruxaria parecia se expressar mais na parte norte, como Alemanha, França e Escócia.

Ao contrário dos países católicos, em países protestantes como a Suíça, a feitiçaria foi vista como um remanescente das crenças católicas e um produto da ignorância. [Vi] As bruxas eram, portanto, vistas como ignorantes da verdadeira crença e da verdadeira religião. A feitiçaria e a heresia estavam intimamente ligadas, à medida que os processos de bruxaria aumentavam, os processos de heresia de crença em larga escala diminuíam.

Na Escócia, houve caças de bruxas em larga escala em 1590, 1597, 1620 e 1649. [vii] Foi depois do período de ensaios de heresia abrangentes. Por isso, pode-se argumentar que a feitiçaria era apenas uma maneira alternativa de acusar os hereges, sem chamá-lo de “heresia” mas de bruxaria.

Essas diferenças regionais não podem realmente ser facilmente explicadas. Em lugares como a Rússia e a Estônia, a maioria dos processos de bruxaria foram executados contra homens e não mulheres. [Ix] De acordo com as estatísticas apenas 32% das bruxas eram do sexo feminino na Rússia, em comparação com 82% na Alemanha, por exemplo . [X]



Isto revela que a Europa Oriental tinha visões muito diferentes da Europa Ocidental, possivelmente porque a Europa Oriental era menos dividida pela religião e tinha diferentes visões das mulheres em geral.

O sociólogo Nachman Ben-Yehuda afirma que:

“Somente os países em desenvolvimento mais rápido, onde a igreja católica foi mais fraca, experimentaram uma mania de perseguição às bruxa virulenta (ou seja, Alemanha, França e Suíça). Onde a Igreja Católica foi forte (Espanha, Itália, Portugal), quase não houve uma epidemia de perseguição às bruxas. A Reforma foi definitivamente a primeira vez em que a igreja teve que lidar com uma ameaça em grande escala de sua própria existência e legitimidade”. [Xi]

Isso implica que a fraqueza da Igreja Romana – corrupção, riqueza e poder – que gerou nas pessoas um desejo de Reforma – foi também a razão para tantas mortes em toda a Europa de pessoas inocentes.

O desenvolvimento dos Estados-nação e suas definições eclesiásticas, em vez de colocar consolidar a fé na lógica, parece ter tido o efeito contrário: fez as pessoas acreditarem mais nas superstições de uma certa maneira. A caças às bruxas aconteceram como mecanismo de autoproteção de um poder religioso em formação: tudo que não era controlável era considerado heresia e merecia ser exterminado.



Fonte: texto de Nancy Cardoso Pereira, no blog da autora.
Referências:

– tradução livre do texto: Witchcraft and the Reformation
Witchcraft and the Reformation

[i] James Sharpe, ‘Magic and Witchcraft’ in R. Po-Chia Hsia, A Companion to the Reformation World (Oxford: Blackwell Publishing, 2006) p. 444

[ii] David Ross, England: History of a Nation (New Lanark: Geddes & Grosset, 2008) p. 319

[iii] Hugh Trevor-Roper, Religion, the Reformation and Social Change (London: Macmillan and Company Ltd, 1967) p. 108

[iv] Ibid, p. 109

[v] Merry E. Wiesner-Hanks, Women and Gender in Early Modern Europe(Cambridge: Cambridge University Press, 2008) p. 258

[vi] Peter G. Wallace, The Long European Reformation: Religion, Political Conflict and the Search for Conformity 1350-1750 (London: Palgrave Macmillan, 2004) p. 214

[vii] Sharpe, ‘Magic and Witchcraft’, p. 445

[viii] Diarmaid MacCulloch, Reformation: Europe’s House Divided 1490-1700(London: Penguin Books Ltd, 2004) p. 569

[ix] Cissie Fairchilds, Women in Early Modern Europe 1500-1700 (Harlow: Pearson Education, 2007) p. 239

[x] Ibid, p. 239

[xi]http://www.gendercide.org/case_witchhunts.html

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