terça-feira, 21 de setembro de 2021

Política e religião. A divisão de cargos políticos por crença no Líbano.

Na década de 1940, instituiu-se a tradição que indica que a presidência do país deve ser ocupada por um cristão maronita, o primeiro-ministro deve ser um muçulmano sunita e o porta-voz do parlamento deve ser um muçulmano xiita.

LÍBANO E SUAS CRISES
Já havia um histórico de crise econômica e impasse político no Líbano, país da Ásia que faz fronteira com a Síria ao norte e Israel ao sul. Mas tudo piorou quando no dia 04 de agosto de 2020 uma explosão arrasou o porto da capital Beirute e seus arredores, matando mais de 200 pessoas e deixando mais de 6 mil feridos.
A explosão de centenas de toneladas de nitrato de amônio, que eram armazenadas inapropriadamente sob os olhares negligentes das autoridades de segurança, também fizeram desmoronar o governo libanês. Protestos forçaram a renúncia do primeiro-ministro Hassan Diab, eminente professor de engenharia na Universidade Americana de Beirute e ex-ministro da Educação, que vivia o ápice de sua ascensão política. O caos se estabeleceu, atrapalhando, inclusive, as tentativas de ajuda internacional, visto que os países ficaram inibidos em contribuir para a reconstrução de Beirute, correndo o risco de verem suas ajudas serem desviadas pela corrupção ou dissipadas em outros gastos provocados pelas disputas internas. Entretanto, ressaltamos, que este não é o caso da ajuda prometida pelo governo brasileiro: quatro mil toneladas de arroz. Passado todo esse tempo, não foi enviada por mera incompetência mesmo.

ACORDO CONFESSIONALISTA

 Nabih Berri (presidente do Parlamento), Michel Aoun (presidente da República) e Najib Mikati (primeiro-ministro). Foto: STRINGER / DALATI AND NOHRA / AFP

Somente no dia 10 de setembro de 2021 (foto acima), passado mais de um ano da tragédia, enfim, parece que as forças políticas libanesas chegaram a um acordo para o reordenamento daquela República parlamentarista. Mas há um detalhe que poucos conhecem da representação política libanesa: a divisão dos cargos respeita a divisão de crenças majoritárias, ou seja, há um sistema eleitoral que garante que os assentos da Assembleia Nacional devem ser divididos entre cristãos e muçulmanos.
Num país erguido na diversidade conflitante, foi necessário criar uma equação política e religiosa em busca de consenso.  No livro Tensões Mundiais, Jamil Zugueib Neto e Fábio Bacila Sahd* apontam as origens beligerantes da criação de um Estado libanês:

"as populações que habitavam aquele território já se caracterizavam por marcadas cizânias sectárias. Às identidades religiosas mesclavam-se o preconceito, os interesses políticos conflitantes e a hegemonia de umas sobre as outras, resultando em  recorrentes  embates  armados  e  deslocamentos  populacionais" (p. 18).
Os vencedores da Primeira Guerra Mundial se dividiram na exploração dos territórios petrolíferos do Oriente Médio. Coube à França ficar na administração do Líbano, que perdurou até a independência, em 1943. E é nesta década de 1940 que se instituiu a tradição que orienta que a presidência do país deve ser ocupada por um cristão maronita, o primeiro-ministro deve ser um muçulmano sunita e o porta-voz do parlamento deve ser um muçulmano xiita. Este sistema de divisão do poder político a partir das bases religiosas é conhecido como "confessionalismo".
A Constituição libanesa (disponível aqui, em Inglês), em seu Art. 24, garante que o Poder Legislativo tenha representação igual entre cristãos e muçulmanos; e representação proporcional entre os grupos confessionais dentro de cada uma das duas comunidades religiosas.

ACORDO DE TAIFE

A institucionalização constitucional desse arranjo entre política e religião foi firmada no Acordo de Taife, em 1989. Taife é uma cidade na Arábia Saudita que, em 22 de outubro de 1989, abrigou o encontro entre 62 parlamentares libaneses, sendo 31 cristãos e 31 muçulmanos, para redigirem a Carta Nacional de Reconciliação.
Este movimento de "reconciliação nacional" visava encerrar anos de guerra civil (1975-1990), que foram dolorosos para todos os segmentos, com massacres mútuos e envolvimento/invasão dos países fronteiriços Síria e Israel.
Em Taife, foi decidido que se aumentaria o número de assentos do Parlamento para 128 representações, que abaixo demonstraremos como estão ocupados nos dias de hoje.
 
QUEM É QUEM?
Em suma, usando levantamento da pesquisa intitulada O Líbano e o Nacionalismo Árabe, de José Ailton Dutra Júnior**, podemos saber que:
"atualmente (2014) o estado libanês reconhece oficialmente 18 comunidades religiosas. Entre as cristãs temos: os maronitas, greco católico,   greco   ortodoxo,   armênios   gregorianos,   armênios   católicos,   sírios   ortodoxos (jacobitas),  protestantes,  etc.  Entre  as  muçulmanas:  sunitas,  xiitas,  drusos,  alauítas. Também houve  o  reconhecimento  oficial  dos  judeus  que  chegaram  a  contar  com  alguns  milhares  de indivíduos" (p. 19).
Destacaremos os três segmentos que dividem o poder político: moronitas (cristão), sunitas e xiitas (muçulmanos). Entre as teorias da presença maronita na região, grupo cristão mais numeroso, diz-se que descendem dos seguidores de São Maron e estão presentes na região desde o século VI. Em 1736, a Igreja Maronita se incorporou à Igreja Católica Apostólica Romana, tendo a garantia de manter sua liturgia siríaca e língua aramaica, a falada por Jesus.
Continuando, temos os sunitas, maior segmento do Islã, com forte presença e considerável crescimento na África e Ásia. Já os xiitas são minoritários no Islã, mas já foram o segmento religioso mais numeroso no Líbano, pois foram os primeiros a ocupar o território. A diferença entre sunitas e xiitas está na raiz do islamismo. Pois, para os xiitas, após a morte de Maomé, quem deveria assumir a liderança por herança eram os familiares diretos do profeta, mas, os sunitas consideram heréticas as práticas devocionais manifestadas pelos xiitas aos herdeiros de Maomé.

DESENHO DA REPRESENTAÇÃO PARLAMENTAR
Após a última eleição, em 06 de maio de 2018, temos os seguintes grupos políticos (por número de assentos) com representação na Assembleia Nacional:
- Movimento Patriótico Livre (29): cristão.
- Movimento do Futuro (21): muçulmano sunita.
- Amal (17): muçulmano xiita.
- Forças Libanesas (15): cristão.
- Hezbollah (14): muçulmano xiita.
- Partido Socialista Progressista (9): druso.
- Movimento Azm (4): muçulmano sunita.
- Federação Revolucionário Armênia (3): cristão.
- Kataeb (3): cristão.
- Movimento Marada (3): cristão.
- Partido Social Nacionalista Sírio (3): secular.
- Sunitas pró-8 de Março: muçulmano sunita.
- Bloco Karami (2): muçulmano sunita.
- Sociedade Civil (1): secular.
- Independentes (6): indeterminado.
De 15 grupos políticos apresentados, 12 são orientados por motivação religiosa, sendo 5 cristãos e 7 islâmicos.
As próximas eleições parlamentares são previstas para o mês de maio do ano que vem (2022). Abaixo temos a distribuição dos mandatos, hoje.

Wikipedia

GOVERNO ATUAL
Libnanews

No encontro do último 10 de setembro, compôs-se  o poder da seguinte maneira: o muçulmano xiita Nabih Berri  é o porta-voz do Parlamento, o cristão maronita Michel Aoun  é o presidente da República, o muçulmano sunita Najib Mikati é o primeiro-ministro. O vice-primeiro-ministro é o cristão greco-ortodoxo Saadeh al Shami.
Segundo a Agência Fide, no dia 20 de setembro de 2021, após um intenso debate de mais de 7 horas, o Parlamento deu seu voto de confiança aos atuais ministérios, que compõem este novo governo, e que são divididos assim: 11 cristãos (
cinco maronitas, dois gregos ortodoxos, dois gregos católicos, um apostólico armênio, uma católica de rito latino), 9 muçulmanos (cinco xiitas e sunitas) e 2 drusos. Sendo que somente uma mulher assumiu um ministério. Trata-se da cristã de rito latino Najla Riachi, que tornou-se a ministra para a reforma da Administração.
Somente as Forças Libanesas, que são nacionalistas cristãos de extrema direita, e alguns deputados independentes votaram contra, somando 15 votos. Foram 85 votos a favor e 17 abstenções.

AUDIÊNCIA PÚBLICA NO BRASIL
Há relações estreitas entre o povo libanês e o brasileiro. Inclusive, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) do Senado Federal, expressando essa preocupação com o contexto atual de instabilidade no Líbano, promoverá uma audiência pública remota, no dia 23 de setembro de 2021, a partir das 10h, na ala Alexandre Costa, com transmissão pelos canais públicos e gratuitos. Para se inscrever, clique aqui (Senado).


Referências:

* ZUGUEIB NETO, Jamil; SAHD, Fabio Bacila. Líbano: nação ou agregado de grupos religiosos? Tensões Mundiais, v. 6, n. 11, 2010. Disponível aqui.

** DUTRA JUNIOR, José Ailton. O Líbano e o Nacionalismo Árabe (1952-1967): O Nasserismo como projeto para o Mundo Árabe e o seu impacto no Líbano. 2014. 320 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014. Disponível aqui.
 

Prof. Tony Vilhena - Cientista Político

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