quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Dorothy, 15 anos de martírio

Fonte: Catraca Livre
Há exatos quinze anos recebi uma notícia que ainda ecoa na memória. Naquele sábado, 12 de fevereiro de 2005, pela manhã, do outro da linha alguém chorava e dizia "Tony, corre pra cá, mataram a Dorothy".
Atônito, larguei o que fazia e parti para a Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur, da qual Irmã Dorothy fazia parte e que acolheu muitas de nossas formações, numa esperança de que fosse um engano ou mentira (naquela época não se falava em fake news). Mas, junto com vários companheiros e várias companheiras de sonho e de luta, confirmou-se a tragédia ocorrida na cidade de Anapu. Os fazendeiros latifundiários cumpriram as ameaças e mataram aquela que durante anos viveu para apoiar famílias que queriam a oportunidade de trabalhar a terra para produzir alimentos, não fazer da terra uma mera mercadoria.
De imediato, representando vários movimentos sociais e igrejas ecumênicas, partimos no primeiro ônibus com destino a Anapu, cidade distante quase 400 km de da capital, Belém. Fui, principalmente, porque era seu amigo. Mas também fui por que era do Núcleo Universitário de Apoio à Reforma Agrária (NUARA) e da Igreja Metodista (que compunha o Conselho Amazônico de Igrejas Cristãs - CAIC).
Nas paradas que o ônibus fazia, íamos tendo mais informações do assassinato, dos suspeitos e da resposta da polícia (não havia wi fi, celulares com internet ou tecnologias como whatsapp). Foram quilômetros tensos. Na parada feita para uma breve refeição em Novo Repartimento, um senhor chamou alguém do nosso grupo em particular e disse que havia gente monitorando o nosso ônibus, tanto que ele já sabia que chegaríamos ali, logo, era para ficarmos "atentos".
Os latifundiários, madeireiros e demais poderosos da região queriam reduzir ao máximo a repercussão do caso. Então, um grupo indo de Belém não era "bem-vindo", já que aumentaria a visibilidade da cenário de conflitos e desmandos impostos por autointitulados "fazendeiros", que roubaram terras públicas para vender árvores derrubadas e plantar capim. Tanto que, chegando na casa que ficaríamos em Anapu para aguardar o corpo de Dorothy, que passava por necrópsia na cidade de Altamira, tivemos que que correr de lá e buscar abrigo em outro espaço mais seguro e reservado, já que, num tom de deboche e vitória, circulavam mais ameaças dos ditos "fazendeiros" a todas as pessoas que ousassem se pronunciar em solidariedade à Dorothy.
A noite se arrastava, longa, e o povo foi chegando de todos lugares no barracão da igreja. Cantamos incontáveis vezes a canção do Pe. Zezinho "Mataram mais um irmão" (ouvir aqui), adaptando irmão por irmã. E quando o corpo de Dorothy chegou já eram mais de duas mil pessoas reunidas. Nesta altura, a notícia do martírio de Dorothy era dada em todo mundo. O assassinos foram presos imediatamente, mas o mandante, Regivaldo Pereira Galvão, conhecido como "Taradão", só recentemente foi preso, após muita pressão de movimentos como o Comitê Dorothy.

Passados estes quinze anos é de se pensar o que mudou. Muitos ambientalistas e defensores/as dos direitos humanos ainda tombaram após a Dorothy. Segundo a Human Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos, na tradução em português) mais de 300 pessoas foram mortas por defender os povos da Amazônia.
Ao me ver segurando a faixa na foto acima com o ecologista Luciney Vieira, durante o cortejo de sepultamento de Dorothy, lembrei que havia esperança que a partir daquele momento os governos tomariam vergonha por serem negligentes, que avançaríamos enquanto povo organizado, que a morte de Dorothy não poderia ser em vão. Mas chegamos em 2020, tendo no governado federal uma súcia chefiada por um presidente da república inepto e próximo de milícias de bandidos, que com discursos e atos irresponsáveis contribui para estímulo de pessoas que promovem o fogo na floresta, a invasão de terras indígenas e quilombolas e diminuição de fiscalização ao desmatamento.
Compete-nos, cidadãos e cidadãs da Amazônia, resistir, reinventar nossas estratégias organizativas de base e capacitar novas lideranças. Simplesmente formar maioria eleitoral e compor governos progressistas não podem ser a finalidade dos movimentos nem garantia concreta de conquistas. Por Dorothy, por todas as pessoas assassinadas e perseguidas na luta por reforma agrária e demais direitos. Ao lembrar que Dorothy não foi enterrada, mas, sim, semeada, penso que devemos contar sua história para nossas crianças e jovens. Que esta semente brote, cresça e frutifique. Dorothy vive! Sempre! Sempre! Sempre!

Prof. Tony Vilhena
Cientista Político

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