quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

21 de janeiro e a necessidade de se mobilizar contra intolerância religiosa

Arte: F. Palmares

Quando, no dia 27 de dezembro de 2007, o presidente Lula sancionou a Lei 11.635, que instituiu o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, aspirava-se que, enfim, a sociedade brasileira reconheceria e combateria um dos males históricos enraizados desde a colonização portuguesa destas terras no século XVI: a imposição da fé cristã e, por consequência, a perseguição de outras perspectivas de crença e culto.

As primeiras vítimas desta violência foram os povos nativos que aqui estavam primeiro com suas tradições e uma riquíssima diversidade. Posteriormente, os povos africanos que foram escravizados e sequestrados pra cá. Fogueiras foram acesas e corpos queimados em nome de um "Deus acima de todos". Em 2015, o Papa Francisco, ao visitar a Bolívia, pediu "perdão pelas ofensas da própria Igreja contra os povos originários, e também pelos injustificáveis crimes cometidos em nome de Deus durante a chamada conquista da América”.

Somente no final do século XIX, portanto, com o advento da República e intensos debates sobre a laicidade do Estado, o catolicismo deixa de ser religião oficial. A primeira Constituição da República, de 24 de fevereiro de 1891, no Parágrafo 3º do Artigo 72, garante que "Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum".

Nesta conjuntura de abertura religiosa, o protestantismo, outra vertente do cristianismo, estabelece suas missões com maior envergadura, destacando-se o segmento que veio derrotado da Guerra de Secessão nos EUA, altamente racista e escravocrata. Estas missões, em suma, são as instituições modeladoras da teologia fundamentalista e das práticas autoritárias que vão inspirar a organização da maioria das igrejas que hoje chamamos de "evangélicas" e que crescem em progressão geométrica. Segundo o demógrafo José Eustáquio Alves, a população que se declara evangélica no Brasil será maioria já em 2032.

Outras religiões, no Brasil, ficaram na margem da história, ora perseguidas, ora silenciadas. Mesmo com a laicidade do Estado, a cultura religiosa nacional garante ao cristianismo, seja católico ou seja evangélico, privilégios e status que constrangem cotidianamente pessoas de outros credos ou que são ateias. O seu livro sagrado é referendado como O Livro. Sua moralidade é instituída na influência de leis civis e é gabarito comportamental para toda sociedade. Suas organizações possuem direitos, abonos e isenções como nenhuma outra organização de nenhum outro ramo. Privilégios estes que tendem aumentar, visto o número de parlamentares que formam a Bancada Evangélica no Congresso Nacional.  As demais religiões que se ajustem, já que são minoria e não possuem articulação com grande capilaridade para mobilização.

Inclusive, é esta lógica de intimidação religiosa que funciona quando o atual presidente da República, em discurso oficial na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), no dia 22 de setembro de 2020, fala que o Brasil é "cristão" e "conservador". O próprio slogan governamental fala em "Deus acima de todos". Entretanto, para muitos que se escandalizam com as posturas violentas e bizarras deste governo, contando até com pequenos movimentos de dentro do próprio cristianismo, fica a pergunta: Que Deus é esse de que se está falando?

É o deus que inspirou as fogueiras da Santa Inquisição. É o deus que se satisfez da escravidão. É o deus seguido por traficantes que destroem terreiros e expulsam pais e mães de santos das comunidades. É o deus dos que desejam que quem não o siga vá para o inferno. É o deus de quem agride quem queira viver sua homoafetividade. É o deus do futuro ministro do STF que será "terrivelmente evangélico", palavras do próprio presidente da República. É o deus de pessoas que chamam de assassina uma menina de 10 anos, vítima de estupro, que pede para interromper sua gravidez. É o deus da goiabeira da ministra. É o deus de um governo que, além de generais incompetentes, tem vários representantes desta religiosidade sinistra em elevados cargos.

O considerável retrocesso civilizatório no qual fomos tragados recentemente torna mais urgente e imprescindível celebrar o dia 21 de janeiro: Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Pois, o discurso religioso violento, que poderia ser considerado um resíduo cultural do processo histórico da formação do Brasil, hoje, está se institucionalizando com o bolsonarismo. A imposição do fundamentalismo religioso está contaminando políticas públicas, determinando a escolha de agentes públicos e relegando toda a diversidade religiosa ao isolamento.

21 de janeiro de 2000, é a data de falecimento da Iyalorixá baiana Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda, fundadora do Ilê Axé Abassá de Ogum, Terreiro de Candomblé localizado nas imediações da Lagoa do Abaeté, bairro de Itapuã em Salvador, em 1988. Ela teve sua saúde afetada e morreu de infarto devido à perseguição e calúnia do Jornal Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus. Que seu exemplo de bondade e luta por justiça inspire nossa resistência contra a intolerância religiosa, por políticas de inclusão e respeito à diversidade.


Por Tony Vilhena (Cientista Político)

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