quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Sociologia cheirando à cachaça

Numa dessas noites fui prestigiar uma atividade cultural em praça pública. Maravilha. Todos os cenários e personagens a postos: as vendas de lanche (bicicletas de “completo”, que, para quem não sabe, é a oferta de um salgado com suco a preço popular); os carrinhos de pipoca; a catadora de latinhas, sempre atenta; criançada alucinada nos minicarros e nas minimotocas; vós e vôs adulando os bruguelos; os grupos de jovens que tentam chamar a atenção por suas roupas extravagantes, atitudes irreverentes ou cara de mau; e, é claro, o clube de ébrios que se reúne ao acaso das circunstâncias da oferta e degustação da cachaça numa celebração pública e feliz de rostos que estampam o fracasso e a fraqueza do espírito humano.

De antemão, preciso esclarecer que este texto nasceu naquela noite refletindo sobre estes sujeitos tão comuns em qualquer cidade do Brasil, grande ou pequena, onde recebem uma série de apelidos como “papudinho”, “pé-inchado”, “cachaceiro”, “pé de cana”, etc, mas de maneira nenhuma tem a intenção de glamourizar a miséria humana do alcoolismo a qual homens e mulheres sucumbem após desilusões, impotências e desacertos.

Não interessa o ritmo, a banda, o estilo. Quando a música toca na praça, a ciranda dos biriteiros inicia seu show à parte. É presepada em cima de presepada. Às vezes rola uns desentendimentos, mas a solidariedade mecânica durkheimiana prevalece, pois a constituição interna de moral de cada grupo de pinguços ordena seu funcionamento e alimenta o sentimento de preservação coletiva. 

Eis que, na praça onde eu curtia uma interessante exibição de cultura popular, os troviscados logo criaram uma comissão de frente para carnavalizar seu próprio espetáculo. No jeito deles, os bebuns animavam até mesmo a própria atração oficial. Só que os seguranças do evento se entreolharam, trocaram informações via walk tok e não contaram conversa em expulsá-los do ambiente.

Quase ninguém percebeu essa tensão que escalou para, no meu julgamento, uma injustiça. Pois aquele esquadrão animado de vidas arruinadas não oferecia nenhum risco à continuidade do espetáculo público, tampouco suas danças tortas ofendiam os olhares de ninguém. Aliás, a maioria das pessoas está treinada socialmente a não enxergá-los, a não se importar com aquelas vidas. Então, por que usar a força para excluir aquele pequeno grupo do convívio das demais pessoas?

Confesso que minha indignação foi como a mosca do Skank, que, sem asas, não ultrapassa a janela da própria casa. Acovardei-me. E na sombra do silêncio cínico dos covardes contemplei mais uma derrota na vida daqueles desafortunados, que aceitaram seu enxotamento sem nenhuma tentativa de resistir.

Demorei para entender que os seguranças, ao optarem em acabar com a festa melancólica de meia dúzias de esfarrapados e retirar aquele grupo indesejável de lá não atuaram meramente na prevenção de atos de perigo, mas sim cumpriram uma atribuição prevista, carimbada e assinada no imaginário sobre as pretensões da sociedade a qual estão a prestar seu serviço de força: limpeza social.

Os seguranças, bem como as polícias, e todos seus aparelhos e aparatos cumpriram sua função cosmética. Nossa sociedade detesta se deparar com suas imperfeições, ainda mais nos tempos atuais de apologia suprema da vida perfeita para postagem em redes sociais. Logo, os seguranças aplicaram o filtro real, não virtual, para o aperfeiçoamento agradável da imagem do espaço público. Que saiam os sujos e xambregados antes que afetem o direito do selfie de alguém.

Quando eu disse no início que não pretendia romantizar o alcoolismo e suas consequências destruidoras é porque contemplo a beleza desgraçada de sua ocorrência nesses humanos degredados, ao passo que tenho consciência de que não há o que se florear sobre isso. Entretanto, sei que a presença desses sujeitos incomoda, visto que corrompem o que seria a normalidade, e isso para mim é importante sociologicamente.

Num mundo condenado à frieza dos contatos virtuais, a Internet dos papudinhos é o mundo real, na praça pública, com uma network vibrante, apesar de cambaleante.

Enquanto no capitalismo se celebra a proeza de se trabalhar muito para ganhar o que der para se sobreviver e se devota ao empreendedorismo, um eufemismos para “te vira e dá um jeito de produzir e consumir”, os papudinhos gastam seu tempo produtivo enchendo a cara, secando a garrafa, tonteando por aí. Acredito que pequenos grupos de papudinhos já abalaram mais a infraestrutura e a superestrutura com seu comportamento antissistêmico do que muitos de jovens que se autointitulam revolucionários, mas que nunca pisaram descalço num chão de terra e não passam de mimados, amamãezados e avovozados.

Boletos, cartão de crédito, contas, notas na escola, religião e suas culpas, reuniões chatas com familiares, hora de bater o cartão de entrada e de saída do trabalho, inflação… foda-se. Os papudinhos recriam sua família e refazem seus compromissos por outra lógica. É terça-feira, de manhã, abre-se a aguardente e se bebe até se fartar ou a droga acabar (mais provável). 

Os papudinhos são uma espécie de anjo, pois estão aqui, entretanto, não fazem questão de ser deste mundo. Como arautos, anunciam com a própria vida exposta ao relento que farão o avesso do que se espera de homens e mulheres em idade produtiva. Vivem no relógio do tempo divino edênico, sem serem atingidos pela culpa do castigo que o trabalho representa, pois, historicamente, trabalho vem tortura, que se impôs como consequência da desobediência humana aos caprichos de Deus. Todo dia é domingo.

Como sociólogos baumanianos, os papudinhos, ao constatarem a forma líquida da sociedade capitalista, que faz escorrer pelas mãos as certezas na economia, a segurança das instituições e a sensibilidade nas relações humanas, puseram suas esperanças numa garrafa e, de dose em dose, vão bebendo até sobrar apenas o frasco.

Os papudinhos com seu desapego ao mundo ofendem o recato e atemorizam o sentimento de ordem. Não fazem campanha, não distribuem panfletos ou criam “igrejas” para atrair novos adeptos… Quem quiser ousar que os siga. E é aí que mora o perigo de sua atração para quem defende o ordenamento, os cidadãos de bem, a meritocracia, etc. E é por isso que eles são combatidos, ridicularizados e reprimidos para que seu exemplo não se espalhe numa perigosa febre, que como toda febre apenas demonstra com a elevação da temperatura que o corpo está combatendo uma enfermidade presente.

Aliás, por triste ironia do destino, fui informado que a praça citada no início, hoje chamada de Praça de Esportes Radicais, na cidade de Parauapebas/PA, antes da reforma era chamada carinhosamente de “Praça do Pé Inchado”, numa “perigosíssima” homenagem do povo aos grupos de papudinhos que se reuniam lá.


Por Tony Vilhena - Cientista Político

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