Em virtude do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, publicamos a história do surgimento da diversidade religiosa
Pouco tempo depois do início de tudo, uma mulher de nome HUMANIDADE, mas que há bastante tempo, sem saber precisar os motivos,
permitia que lhe chamassem de DIVINDADE, como se fosse um codinome que
lhe desse mais autoridade ou charme, muito humilde, sem paradeiro
definido e de origem ignorada, guardava no ventre a expectativa de vida e
na memória a explicação de todos os mistérios do mundo.
Aquela barriga imensa, a aparente situação vulnerável e a
curiosidade de saber os porquês da vida atraíram a solidariedade de uma
família que providenciou os cuidados necessários para acompanhar a
gravidez. O sobrenome da família era SOCIEDADE, uma família comum, com
seus altos e baixos, amores e conflitos, refeições coletivas e azias
individuais.
Não sabemos se por agradecimento ou pagamento,
misericórdia ou altivez, desespero ou segurança, a mulher grávida
decidira no seu coração entregar o bebê para aquela família logo que
viesse ao mundo e, também, revelar os tão comentados mistérios do mundo.
Os dias passavam lento e sem calendário ainda. Sucedeu
que numa madrugada gélida e chuvosa, quando o frio extremo fez aumentar a
sonolência, deixando todos como que entorpecidos,
chegou a hora do parto. E a mulher grávida, numa agonia, entre dores e
expressões ofegantes, sem que ninguém ouvisse seus gritos abafados pelo
som de chuva, deu a luz, mas, como uma mártir, na solidão do seu
heroísmo, não resistiu e morreu.
Somente quando as primeiras luzes tímidas do sol
forçaram entrada pelas frestas da casa, a família anfitriã conseguiu
despertar. Quando ainda ruminava seu torpor, foi tomada numa síncope de
remorso por dormir tão profundo a ponto de não assistir em nenhum
momento a mulher prenha que abrigava em seu lar. Logo, em sincronia, a
família deu um salto e voou para o leito, vindo a deparar-se com um
corpo inerte e três valentes meninas gêmeas chorando quase sem forças
entre cordões e lençóis.
"Então era por isso aquele barrigão", foi o primeiro
pensamento silencioso diante da tripla surpresa das gêmeas. O segundo,
diante da mãe pálida de morte, foi "e agora como saberemos o que
queríamos saber sobre a vida, o mundo..?". Após as devidas providências fúnebres, tratou-se de
dar nomes para as três gêmeas, que passaram a se chamar FÉ, CRENÇA e
RELIGIÃO.
As três tiveram a mesma criação. Ganhavam brinquedos
iguais nos aniversários, mudando apenas as cores, demonstravam apego e defesa umas das outras, mas, mesmo assim, aqui e
acolá, se engalfinhavam por trivialidades, coisas de criança.
A família cuidadora se esforçava sobremaneira para a
manutenção das trigêmeas. Carinho e repreensão na medida certa,
orientações e pequenos puxões de orelhas ao sabor das peraltices e
tolices que as meninas aprontavam... e como aprontavam.
Veio a adolescência, as sandices, os namoros, as
impaciências, os desejos e as rebeldias. Vontade de transformar o mundo
misturada com a preguiça de arrumar sua própria gaveta. Mas todos esses
ingredientes da juventude revelavam à contra luz uma marca hereditária
de ternura e o comprometimento com o bem, atributos ainda não
compreendidos como herança materna.
Demorou muito, mas muito mesmo, para a família
SOCIEDADE entender que estavam aprendendo com as maninhas FÉ, CRENÇA e
RELIGIÃO mais que as ensinando. Claro, as revelações se dão lentamente,
caso contrário, podemos não suportar. É como contemplar a beleza das
borboletas. A aproximação tem que ser passo a passo, diminuindo a
respiração, cuidando de gesticular menos e dilatar a pupila mais... até o
vermos cada tom de cor das asas e sua abertura magistral que quase
forma um sorriso de permissão para nosso olhar.
Mesmo que tardiamente, a família SOCIEDADE ainda
desfrutou da sabedoria que emanava não de discursos, mas das ações
daquelas meninas. Até que elas cresceram e se emanciparam. Cada uma
seguiu um rumo.
Um dia, e isso foi logo após inventarem o calendário, agora já mulheres formadas,
FÉ, CRENÇA e RELIGIÃO retornam de surpresa à casa onde foram criadas pela família SOCIEDADE, levando consigo sua prole.
E sabe aquela história da grande probabilidade de pessoas gêmeas gerarem gêmeos? Foi confirmada em cem porcento. As trigêmeas encheram a
casa de contentamento e trabalheira. E, após a apresentação dos bebês e colocação do papo em dia,
voltaram para seus caminhos.
E a parição de gêmeos continua à cada gestação. Até os
dias de hoje já foram tantas as linhagens crescidas em progressão geométrica que
tornaram-se incontáveis, com diversos nomes, comportamentos e tamanhos.
As descendências herdeiras daquelas três gêmeas se espalharam pela terra, conquistaram status e poder, tomaram pra si o
direito de ordenar os calendários, posteriormente, de compasso não mão,
traçaram seus limites territoriais, ajudaram a criar povos para
habitarem dentro destas linhas imaginárias, inflamaram os corações de
exércitos para justificar que deveriam matar e morrer na defesa dos
calendários e das fronteiras que haviam sido inventados, escolheram as cores das bandeiras,
apontando para o além, motivando os anseios de poder e de potência.
Mas esqueceram que tem a mesma origem na matriarca fundadora. Por isso, temos que recontar esta história.
Texto: Tony Vilhena, cientista social e mestre em ciências da religião.