21 de janeiro: Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa
Vemos nestas últimas semanas um mundo incendiado por manifestações de ódio e fanatismo baseados na defesa de religião. Os atentados terroristas promovidos por seguidores de correntes radicais do islamismo à revista francesa Charlie Hebdo corromperam a justa indignação coletiva provocada por suas charges ofensivas .
Em janeiro de 2012, muitos ficaram surpresos com o artigo
do renomado escritor Luis Fernando Veríssimo publicado nos grandes
jornais do país. Pois ele usou mais da metade de seu espaço semanal para
pedir desculpas aos seguidores da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos
Últimos Dias, conhecidos popularmente como mórmons.
A
louvável atitude de Veríssimo foi uma resposta aos diversos leitores
que o corrigiram sobre as práticas daquela religião. É que na semana
anterior ele escrevera em tom sarcástico que caso Mitt Romney, seguidor
da Igreja Mórmon e concorrente de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos, vencesse
as eleições, os americanos experimentariam a novidade de observarem três
ou quatro primeiras-damas transitando na Casa Branca. Não sabia Veríssimo,
que a prática da poligamia foi descontinuada por esta Igreja há mais
de um século e, segundo as suas “Regras de Fé”, o membro que adota
“casamento plural” é “excomungado”.
Veríssimo
ao se redimir publicamente reconhece sua ignorância no assunto e diz
“meu erro de mais de cem anos foi imperdoável, mas peço perdão assim
mesmo. Não se repetirá. Gravarei com brasa na testa, para nunca mais
esquecer: informe-se antes de dar palpite”.
Infelizmente,
nem todos os casos de pessoas e instituições agredidas por questões
religiosas terminam desta forma exemplar. Recentemente o apresentador
José Luiz Datena, da TV Bandeirantes, foi obrigado pelo Ministério
Público Federal a se retratar por ter dito, no auge de seu furor
“jornalístico” ao relatar mais um caso de violência, que aquela
atrocidade só poderia ter sido cometida por um “ateu”, “uma pessoa sem
Deus no coração”. Desta forma, rotulou as pessoas que optam por não
seguir crenças e instituições religiosas como as mais inclinadas ao mal,
à crueldade, ferindo a liberdade de consciência e de crença no Brasil.
Ainda
constatarmos em nossa sociedade a existência da intolerância religiosa,
quando pessoas e instituições agem com violência e desrespeito com quem
tem prática de fé “diferente”. O fato da formação colonial do Brasil
ter sido baseada num cristianismo imposto, que se tornou a “religião da
maioria”, contribui muitas vezes para uma perspectiva de "demonização", marginalização e perseguição das religiões
“não-cristãs”, destacando-se às de matrizes africanas.
Outro cenário preocupante é o de disputa “mercadológica” entre igrejas, que tratam seus
fiéis enquanto “clientes”. Por outro lado, estes fiéis buscam o “consumo” de milagres, curas e conforto efêmero para as angustias do
dia a dia, uma popularização da autoajuda com retoques de linguagem e simbologia sacra. Esta relação utilitarista da religião estimula a concorrência, o individualismo, o que intimida qualquer iniciativa de diálogo ou ação conjunta para o bem público, reduzindo a ação religiosa para estratégias de "recrutamento" de massas, "fidelização" e ampliação do poderio político-econômico de lideranças encasteladas.
Também é preciso citar as perversidades da violência
“intra-religiosa”, quando fiéis
são perseguidos dentro de sua igreja/religião por líderes que anseiam por mais poder e autoridade para exercício de seu mandato/"sacerdócio", visando mantê-lo por
fatores econômicos (aquisição de mais bens, conforto, status, etc.) e ideológicos (imposição de projeto de futuro para a instituição, projeção político-partidária, interpretação mais verdadeira da revelação).
Quando esses casos vêm à tona, ocupando espaço na grande imprensa, a sociedade tem a oportunidade de refletir sobre o papel das religiões e as religiões sobre sua responsabilidade com a sociedade. Estes acontecimentos desestruturam o “mandamento” social que diz que “religião (futebol e política) não se
discute”. Argumento que sempre empurrou para baixo do tapete cotidiano
às inúmeras ocorrências de violências motivadas por fé, religião ou
crença.
Assim
também veio à tona o caso da sacerdotisa Gildásia dos Santos e Santos,
Ialorixá do terreiro Axé Abassá de Ogum, em Salvador/BA, carinhosamente
conhecida como Mãe Gilda. Em 1999 ela teve uma foto sua usada de forma
depreciativa pelo periódico Folha Universal da Igreja Universal do Reino
de Deus (IURD). Depois de ter seu terreiro invadido e
depredado e idas e vindas aos Tribunais em busca de
justiça pelas ofensas que sofreu, Mãe Gilda teve sua saúde fragilizada e faleceu por complicações cardíacas
no dia 21 de janeiro de 2000. Somente em 2009 saiu o resultado da ação
na Justiça, sendo a IURD condenada a indenizar os familiares da
sacerdotisa.
O Dia Nacional de Combate a Intolerância Religiosa, comemorado no dia 21 de janeiro, oficializado pela Lei nº
Lei 11.645,
em 2007, é uma homenagem à Mãe Gilda e um sinal de que a luta contra a
intolerância religiosa merece ser divulgada e ampliada para toda a
sociedade. A religião que na virada do século passado esteve condenada à
indiferença, revigora-se no século XXI enquanto pano de fundo de
tensões e conflitos e, ao mesmo tempo, plataforma possível de encontros e
diálogos.
A
dimensão pública da relação com o sagrado e o pluralismo religioso
estão presentes na TV, na escola, no trabalho e já é comum encontrarmos
nas casas pessoas da mesma família convivendo com variadas pertenças
religiosas. Eis o mundo estilhaçado que nos apresenta o antropólogo Clifford Geertz, com sua fragmentação pós-moderna. Logo, precisamos consolidar, avançar, refazer o conceito da
diversidade religiosa enquanto coexistência de religiões,
espiritualidades e até mesmo não-crenças numa relação social de
reconhecimento do direito, do valor e da legitimidade das diferentes
manifestações e experiências. Caso contrário, correremos o risco de
viver numa sociedade na qual a ameaça mora ao lado ou consigo,
agarrado aos estilhaços e vociferando conter em suas mãos toda a
verdade.
Apresentamos como valiosa e merecedora de estudos a experiência do
Comitê Inter-religioso do Pará
que há mais de seis anos vem reunindo mais de vinte entidades
(religiosas, políticas, acadêmicas, etc.) em cooperação, atuando em
apoio aos movimentos sociais, elaborando subsídios para organizações
populares e promovendo visitas e celebrações inter-religiosas.
A vivência de aprendizado mútuo entre pessoas de religiões diferentes, como no
Comitê Inter-religioso do Pará,
buscando pontos de encontro e de ação conjunta em torno das infinitas
formas de manifestação do “Sagrado”, do “Misterioso”, do “Inefável”, faz
lembrar as palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano ao narrar a
primeira vez que uma criança viu o mar. Após subir cansativas dunas de
areia, a criança olha lá de cima o mar com toda aquela imensidão, fulgor
e beleza. O deslumbramento é tanto diante daquela maravilha
surpreendente que quando finalmente consegue falar, ainda tremendo,
gaguejando, só consegue pedir a quem está no seu lado “amigo/a, me ajuda olhar!”.
Texto: Profa. Giovana Ferreira, cientista da religião; e Prof. Tony Vilhena, cientista social. Para o
Instituto Ramagem.