O direito de criticar dogmas e encaminhamentos é
assegurado como liberdade de expressão, mas atitudes agressivas, ofensas
e tratamento diferenciado a alguém em função de crença ou de não ter
religião são crimes inafiançáveis e imprescritíveis
Juliana Steck
Juliana Steck
A intolerância religiosa é um conjunto de ideologias e atitudes
ofensivas a crenças e práticas religiosas ou a quem não segue uma
religião. É um crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana.
O agressor costuma usar palavras agressivas ao se referir ao grupo
religioso atacado e aos elementos, deuses e hábitos da religião. Há
casos em que o agressor desmoraliza símbolos religiosos, destruindo
imagens, roupas e objetos ritualísticos. Em situações extremas, a
intolerância religiosa pode incluir violência física e se tornar uma
perseguição.
Crítica não é o mesmo que intolerância. O direito de criticar
encaminhamentos e dogmas de uma religião, desde que isso seja feito sem
desrespeito ou ódio, é assegurado pelas liberdades de opinião e
expressão. Mas, no acesso ao trabalho, à escola, à moradia, a órgãos
públicos ou privados, não se admite tratamento diferente em função da
crença ou religião. Isso também se aplica a transporte público,
estabelecimentos comerciais e lugares públicos, como bancos, hospitais e
restaurantes.
Ainda assim, o problema é frequente no país. Algumas denúncias se
referem à destruição de imagens de orixás do candomblé ou de santos
católicos. Ficou famoso no Brasil o pastor da Igreja Universal do Reino
de Deus Sérgio Von Helder, que, em 1995, chutou uma imagem de Nossa
Senhora Aparecida em rede nacional de TV. Há também casos de testemunhas
de Jeová que são processadas por não aceitarem que parentes recebam
doações de sangue, de adventistas do Sétimo Dia a quem não são dadas
alternativas quando não trabalham ou não fazem prova escolar no sábado, e
de medidas judiciais que impedem sacrifício de animais em ritos
religiosos, entre outros.
Em janeiro, a TV Bandeirantes foi condenada pela Justiça Federal de
São Paulo por desrespeito à liberdade de crenças porque, em julho de
2010, exibiu comentários do apresentador José Luiz Datena relacionando
um crime bárbaro à “ausência de Deus”. “Um sujeito que é ateu não tem
limites. É por isso que a gente vê esses crimes aí”, afirmou o
apresentador. A emissora foi condenada a exibir em rede nacional, no
mesmo programa, esclarecimentos sobre diversidade religiosa e liberdade
de crença.
Recentemente têm provocado reações algumas declarações do presidente
da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, Marco Feliciano
(PSC-SP). Pastor evangélico, ele escreveu no Twitter que africanos são
descendentes de um “ancestral amaldiçoado por Noé” e que sobre a África
repousam maldições como paganismo, misérias, doenças e fome. A
presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado, senadora Ana
Rita (PT-ES), se manifestou a respeito.
— São declarações e atitudes que instigam o preconceito, o racismo, a
homofobia e a intolerância. Todas absolutamente incompatíveis e
inadequadas para a finalidade do Legislativo — disse.
Denúncias cresceram mais de 600% em um ano; crenças de matriz africana são as que mais sofrem ataques
A quantidade de denúncias de intolerância religiosa recebidas pelo
Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
cresceu mais de sete vezes em 2012 em relação a 2011, um aumento de
626%. A própria secretaria destaca, no entanto, que o salto de 15 para
109 casos registrados no período não representa a real dimensão do
problema, porque o serviço telefônico gratuito da secretaria não possui
um módulo específico para receber esse tipo de queixa. Ou seja, muitos
casos não chegam ao conhecimento do poder público. A maior parte das
denúncias é apresentada às polícias ou órgãos estaduais de proteção dos
direitos humanos e não há nenhuma instituição responsável por
contabilizar os dados nacionais.
A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da
Presidência da República (Seppir) também não possui dados específicos
sobre violações ao direito de livre crença religiosa. No entanto, o
ouvidor do órgão, Carlos Alberto Silva Junior, diz que o número de
denúncias de atos violentos contra povos tradicionais (comunidades
ciganas, quilombolas, indígenas e os professantes das religiões e cultos
de matriz africana) relatadas à Seppir também cresceu entre 2011 e
2012.
Muitas agressões são cometidas pela internet. Segundo a associação
SaferNet, em 2012, a Central Nacional de Denúncias de Crimes
Cibernéticos recebeu 494 denúncias de intolerância religiosa
praticadas em perfis do Facebook. O mundo virtual reflete a situação do
mundo real. De 2006 a 2012, foram 247.554 denúncias anônimas de páginas
e perfis em redes sociais que continham teor de intolerância religiosa.
A tendência é de queda: de 2.430 páginas em 2006 para 1.453 em 2012.
Mas a tendência não significa que o número de casos reportados de
intolerância religiosa tenha diminuído. “Uma das razões é a
classificação feita pelo usuário. Mesmo páginas reportadas por possuir
conteúdo racista, antissemita ou homofóbico têm, também, conteúdo
referente à intolerância religiosa”, explica Thiago Tavares, coordenador
da central.
Os dados foram divulgados pela Agência Brasil este ano no Dia
Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, 21 de janeiro. A data foi
instituída em 2007 pela Lei 11.635, em homenagem a Gildásia dos Santos e
Santos, a Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, de Salvador. A
religiosa do candomblé sofreu um enfarte após ver sua foto no jornal
evangélico Folha Universal, com a manchete “Macumbeiros charlatões
lesam o bolso e a vida dos clientes”. A Igreja Universal do Reino de
Deus foi condenada a indenizar os herdeiros da sacerdotisa.
A ministra da Seppir, Luiza Bairros, disse, nas comemorações de 21 de
janeiro, que os ataques a religiões de matriz africana chegaram a um
nível insuportável. “O pior não é apenas o grande número, mas a
gravidade dos casos. São agressões físicas, ameaças de depredação de
casas e comunidades. Não se trata apenas de uma disputa religiosa, mas
também de uma disputa por valores civilizatórios”, disse.
Na ocasião, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República lançou um comitê de combate à intolerância religiosa. A
iniciativa pretende promover o direito ao livre exercício das práticas
religiosas e auxiliar na elaboração de políticas de afirmação da
liberdade religiosa, do respeito à diversidade de culto e da opção de
não ter religião.
O comitê terá 20 integrantes, sendo 15 deles representantes da
sociedade civil com atuação na promoção da diversidade religiosa. Ainda
sem data definida para começar efetivamente a funcionar, o comitê
depende de um edital que selecionará os integrantes.
Perseguição policial até os anos 1960
O Brasil é um país laico. Isso significa que não há uma religião
oficial e que o Estado deve manter-se imparcial no tocante às religiões.
Porém, sendo um país de maioria cristã, práticas religiosas africanas
foram duramente perseguidas pelas delegacias de costumes até a década de
1960.
Como agir |
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No caso de discriminação religiosa, a vítima deve ligar para a Central de Denúncias (Disque 100) da Secretaria de Direitos Humanos.
Também deve procurar uma delegacia de polícia e registrar a ocorrência. O delegado tem o dever de instaurar inquérito, colher provas e enviar o relatório
para o Judiciário. A partir daí terá início o processo penal.
Em caso de agressão física, a vítima não deve limpar ferimentos nem trocar de roupas — já que esses fatores constituem provas da agressão — e precisa exigir a realização de exame de corpo de delito.
Se a ofensa ocorrer em templos, terreiros, na casa da vítima, o local deve ser deixado da maneira como ficou para facilitar e legitimar a investigação das
autoridades competentes.
Todos os tipos de delegacia têm o dever de averiguar casos dessa natureza, mas em alguns estados há também delegacias especializadas. Em São Paulo,
por exemplo, existe a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (veja o Saiba Mais). |
No período colonial, as leis puniam com penas corporais as pessoas
que discordassem da religião imposta pelos escravizadores. Decreto de
1832 obrigava os escravos a se converterem à religião oficial. Um
indivíduo acusado de feitiçaria era castigado com pena de morte. Com a
proclamação da República, foi abolida a regra da religião oficial, mas o
primeiro Código Penal republicano tratava como crimes o espiritismo e o
curandeirismo.
A lei penal atual, aprovada em 1940, manteve os crimes de charlatanismo e curandeirismo.
Até 1976, havia uma lei na Bahia que obrigava os templos das
religiões de origem africana a se cadastrarem na delegacia de polícia
mais próxima. Na Paraíba, uma lei aprovada em 1966 obrigava sacerdotes e
sacerdotisas dessas religiões a se submeterem a exame de sanidade
mental, por meio de laudo psiquiátrico.
Muitas mudanças ocorreram até 1988, quando a Constituição federal
passou a garantir o tratamento igualitário a todos os seres humanos,
quaisquer que sejam suas crenças.
O texto constitucional estabelece que a liberdade de crença é
inviolável, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos.
Determina ainda que os locais de culto e as liturgias sejam protegidos
por lei.
Já a Lei 9.459, de 1997, considera crime a prática de discriminação
ou preconceito contra religiões. Ninguém pode ser discriminado em razão
de credo religioso. O crime de discriminação religiosa é inafiançável (o
acusado não pode pagar fiança para responder em liberdade) e
imprescritível (o acusado pode ser punido a qualquer tempo).
A pena prevista é a prisão por um a três anos e multa.
Restrições religiosas atingem 75% da população mundial
Uma pesquisa mundial feita em 2009 e 2010 indicou o aumento da
intolerância religiosa. Segundo o Instituto Pew Research Center, com
sede nos Estados Unidos, 5,2 bilhões de pessoas (75% da população
mundial ) vivem em locais com restrições a crenças.
No
período, passou de 31% para 37% a proporção de países com nível elevado
ou muito alto de restrições. Entre os países com as maiores restrições
governamentais (leis, políticas e ações para limitar práticas
religiosas), estavam Egito, Indonésia, Arábia Saudita, Afeganistão,
China, Rússia e outros que somaram 6,6 pontos ou mais em um índice de
máximo 10. O Brasil aparece, junto com Austrália, Japão e Argentina, em
nível baixo, entre os países com 0 a 2,3 pontos.
Mesmo nos países com nível moderado ou baixo de restrições, houve
aumento da intolerância. Nos Estados Unidos, por exemplo, houve uma
proposta — rejeitada pela Justiça — de declarar ilegal a lei islâmica.
Na Suíça, foi proibida a construção de novos minaretes (torres em
mesquitas). O aumento dessas restrições foi atribuído a fatores como
crescimento de crimes e violência motivada por ódio religioso.
Projetos modificam Código Penal e regulamentam a Constituição
Entre
as propostas em tramitação no Congresso para combater a intolerância
religiosa, está o PLC 160/2009, que dispõe sobre as garantias e os
direitos fundamentais ao livre exercício da crença, à proteção aos
locais de cultos religiosos e liturgias, e à liberdade de ensino
religioso, buscando regulamentar a Constituição. O projeto, do deputado
George Hilton (PRB-MG), está na Comissão de Assuntos Sociais do Senado
(CAS). O relator, Eduardo Suplicy (PT-SP, foto), propôs audiência, ainda
não agendada, para debater o texto.
O assunto vem sendo discutido também no âmbito da proposta de reforma
do Código Penal, tema de comissão especial do Senado. Um grupo de
juristas preparou o anteprojeto, posteriormente apresentado como projeto
(PLS 236/2012) por José Sarney (PMDB-AP). A intolerância religiosa está
relacionada a assuntos do código, como os crimes contra os direitos
humanos e os que podem ser praticados pela internet.
Saiba mais
Lei 9.459/1997, que considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões
http://bit.ly/lei9459
http://bit.ly/lei9459
Cartilha da Campanha em Defesa da Liberdade de Crença e contra a Intolerância Religiosa
http://bit.ly/cartilhaCEERT
http://bit.ly/cartilhaCEERT
Mapa da intolerância religiosa e violação ao direito de culto no Brasil
http://bit.ly/mapaIntolerancia
http://bit.ly/mapaIntolerancia
Novo Mapa das Religiões
http://bit.ly/mapaReligioes
http://bit.ly/mapaReligioes
Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) de São Paulo
Rua Brigadeiro Tobias, 527, 3º andar, bairro Luz, São Paulo, SP
Tel: (11) 3311-3556/3315-0151 ramal 248
Tel: (11) 3311-3556/3315-0151 ramal 248
Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos no Rio de Janeiro
Tel: (21) 2334-9550
Tel: (21) 2334-9550
Veja as edições anteriores do Especial Cidadania em www.senado.leg.br/jornal
Jornal do Senado
(Reprodução autorizada mediante citação do Jornal do Senado)
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