Amanhã é dia de celebrarmos o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém do Pará.
A música, a poesia e a literatura descrevem com beleza e maestria, de
todos os ângulos possíveis, a grande festa religiosa que move multidões
em romarias...
Bem. Meu olhar sobre o Círio é literalmente assaltado pelo aspecto da subversão que a festividade apresenta.
O Círio não é de uma religião ou de uma igreja. .. ele é do povo. O
Bispo até tenta impor sua autoridade clerical, veste-se com as roupas
pomposas, anda como se estivesse saindo de carruagens medievais, emite
sermões com a opinião da Igreja, mas o povo está vidrado na "Santinha". O
ano que a Igreja disser que não vai ter Círio, o povo dará de ombros e
sairá da Sé à Nazaré no segundo domingo de outubro, tranquilamente.
O governo, a polícia, as "autoridades" emitem notas, se arrumam para
aparecer na tv, fazem de tudo pra ficar no "núcleo de poder" que tem no
centro a Berlinda, quanto mais próximo da Berlinda, mais status e
prestígio se tem. Entretanto, quem tem intimidade com o sagrado de
verdade sãos as vovozinhas que lá de longe acenam suas ventarolas para a
"Nazica" , "Naza" ou "Nazinha". Eu penso... égua , isso sim é
in-ti--mi-da-de.
Aqui, como não é um tratado de antropologia, nem vou falar do Auto do
Círio, da Festa da Chiquita (lacrou, mana!!!), do arraial, da
diversidade religiosa transversal que há em cada manifestação, enfim,
todo cenário paradoxal entre sagrado e profano que está presente por
todos os cantos da cidade.
Por fim, registro outro traço interessante e subversivo do Círio. É o de
se celebrar a força e a divindade de uma mulher. Uma Igreja comandada
por homens, uma sociedade que a cada quatro segundos violenta uma
mulher, têm que se render, se ajoelhar, rememorar a história de uma
mulher que engravidou jovem, na periferia da periferia de uma cidade
chamada Nazaré, solteira, que foi inicialmente abandonada até pelo
noivo, mas que guardou no seu ventre uma possibilidade de acabar com a
humilhação que seu povo sofria dos romanos, de trazer à tona uma vontade
coletiva de dizer NÃO para os senhores, de se pensar como seria viver
de outra forma... Tanto que quando Jesus nasceu, Maria e José tiveram
que fugir pra África para os governantes não o matarem.
É esta Maria que celebro. Nela vejo minha vó, minha mãe, minha filha,
minha companheira, todas as mulheres que levantam a cabeça e aceitam o
desafio de encarar a vida de forma transformadora e empoderada, que no
dia a dia são chamadas loucas, de bruxas, de putas... mas resistem e
resistem.
É assim que quero desejar um feliz Círio para as pessoas que amo. Que
seja um Círio ainda mais especial do que os dos outros anos. Um feliz
Círio subversivo.
Tony Vilhena
Cientista social e mestre em ciências da religião