terça-feira, 8 de julho de 2014

Movimento de Mulheres e as religiões: diálogos possíveis. Por Sarah de Roure

Tratar da violência sexista, embora seja um assunto muito antigo, e até tradicional entre o movimento de mulheres, não é tarefa fácil. Primeiro, porque há inúmeras resistências em identificar determinada violência como algo dirigido às mulheres como grupo social e, portanto, fruto de uma relação de desigualdade. Em outras palavras, são muitos os que se negam a reconhecer que a violência sofrida por mulheres não se justifica de nenhuma maneira, mas se apoia na realidade das relações sociais de sexo. Segundo, por uma conivência social com os atos de violência praticados pelos homens, chegando a certa solidariedade que se apoia em justificativas várias como a defesa da honra, “o homem apaixonado fica maluco”, estar sob o efeito de alguma substância entorpecente, etc.

Não é raro que se tente justificar essa violência com argumentos que partem da ideia de que há uma forma certa das mulheres serem e fazerem as coisas e quando saem dessa ordem merecem ser castigadas de alguma forma. Por exemplo, quando uma mulher sofre uma violência sexual rapidamente alguém pergunta que roupa ela estava usando ou como, possivelmente, se insinuou justificando assim a violência e responsabilizando a vítima.
Frente a isso, há quatro décadas, o movimento feminista brasileiro luta para que a violência sexista seja compreendida como um problema político, fundado nas relações de poder entre homens e mulheres e não naturalizada ou tratada como algo privado e sem relevância social.


Mas o que é mesmo a violência sexista?
É a violência que as mulheres sofrem pelo simples fato de serem mulheres e que é cometida por um homem, ou por uma instituição, em geral e não por acaso, sob uma direção masculina. Pode ser percebida, portanto, como a expressão mais dura da desigualdade entre homens e mulheres.
Ainda que o espaço familiar e privado seja o principal lugar de violência (a violência doméstica), a violência contra as mulheres afeta todos os âmbitos, públicos e privados. Por isso suas causas não devem ser procuradas nos relacionamentos familiares, mas sim na estrutura patriarcal, nos modelos sociais e na distribuição desigual de poder entre homens e mulheres. (CARRASCO, 2012).
Alemany, no Dicionario Crítico do Feminismo, define o verbete Violências assim:
“As violências praticadas contra as mulheres devido ao seu sexo assumem múltiplas formas. Elas englobam todos os atos que, por meio de ameaça, coação ou força, lhes infligem, na vida privada ou pública, sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos com a finalidade de intimidá-las, puni-las, humilhá-las, atingi-las na sua integridade física e na subjetividade.”
O esforço para definir a violência é importante porque muitas vezes na tentativa de visibilizar outras situações de violência, que também precisam ser denunciadas, coloca-se tudo junto, entretanto essas têm outra natureza e devem ser enfrentadas a partir da sua especificidade. A violência sexista tem um agressor e uma agredida, e é dessa maneira porque reflete uma relação de poder.
A partir do feminismo, a violência tem sido denunciada como ferramenta de controle do patriarcado sobre a vida das mulheres e, portanto, todas as mulheres são afetadas pela violência sexista.

Um retrato da violência machista no Brasil.
A violência machista no Brasil marca o cotidiano de milhões de mulheres que se vêem sem direitos ou receosas em estar nos espaços públicos, tendo sua liberdade de ir e vir cerceada, sua vida profissional limitada, sua integridade física e psicológica violadas,  ou sua sexualidade controlada.
A pesquisa da Fundação Perseu Abramo de 2010 dá a dimensão da amplitude: 18% das brasileiras reconhecem espontaneamente ter sofrido alguma violência por parte de um homem. Quando estimuladas por uma lista dos diferentes tipos de violência, essa proporção chegou a 40%, ou seja, são cerca de 39 milhões de mulheres em todo o país que sofreram ou sofrem alguma violência por parte de um homem. Uma em cada 10 mulheres já foi espancada pelo menos uma vez na vida.
Neste contexto, a criação da Lei Maria da Penha contribuiu para desnaturalizar e tipificar a violência contra a mulher como um crime. Após seis anos da lei, o grande desafio é implementá-la na prática em todas as suas dimensões. Os obstáculos estão fundados na omissão dos governos que, somado ao machismo presente no sistema judiciário, secretarias de segurança e órgãos afins contribuem para que a Lei Maria da Penha não seja aplica em sua integralidade. Uma pesquisa  Avon/Instituto IPsos revela que 52% das entrevistadas acreditam que juízes e policiais desqualificam o problema da violência contra a mulher.
Como resposta a essa problemática, o movimento de mulheres vem debatendo a autonomia como meio para a liberdade das mulheres, questionando as estruturas patriarcais entre as quais a violência de gênero a que todas estão expostas, e também a sobrecarga do trabalho reprodutivo, a concentração da renda nas mãos dos homens e a consequente pauperização das mulheres.

Mas e as Igrejas frente a isso?
A pergunta remete a outras tantas possíveis, mas considerando a denúncia da violência contra as mulheres como um campo de atuação dos movimentos de mulheres é possível pensar em nexos entre estes e as igrejas? O que poderiam ter em comum esses dois estranhos? Alguma agenda, reivindicação ou método? O que salta aos olhos ao buscar algum elemento comum são as próprias mulheres.
Por um lado, o movimento de mulheres tem como seu sujeito político coletivo as mulheres organizadas em torno a reivindicações comuns e que com suas práticas questionam a ordem patriarcal.
Do outro lado, as diversas igrejas têm seu cotidiano feito por mulheres que ainda que, na maioria das vezes, não têm permissão para ocupar os espaços de poder religioso. Seu trabalho e dedicação cotidiana é que permitem a vida nos templos. Nesse sentido, o que as comunidades religiosas têm a dizer sobre a violência que sofrem as mulheres dentro e fora do espaço religioso ao olhar para si mesmas e identificar que são femininas? Essa parece ser uma questão que emerge com pertinência, porém, que permanece sem resposta.
Em 2012, a editora Novos Diálogos publicou na internet um pequeno vídeo com uma fala sobre o que cristianismo e feminismo tinham em comum. A resposta era breve, quase literária e pouco organizada como um argumento teológico ou sociológico e afirmava várias convergências possíveis entre ambos. A despeito do esforço em afirmar as convergências, as reações negativas por parte de cristãos foram múltiplas. Foram muitos que se dispuseram a comentar o vídeo com tamanha virulência que foi difícil estabelecer um diálogo sobre seu conteúdo.
Retomar o ocorrido ajuda a pensar nas dificuldades de construir pontes entre o religioso e o não religioso, entre um discurso considerado “sagrado” e outro chamado “profano”. Ou até mesmo das enormes barreiras para perceber que vozes fora dos muros religiosos se encarreguem de temas silenciados pelas igrejas.
Um primeiro passo na trajetória do combate a violência é reconhecer que ela existe e é presente na vida de muitas brasileiras, esperando que tal reconhecimento gere constrangimento entre as lideranças religiosas do país. Além disso dizer respeito às mulheres que são parte de suas comunidades, isso evidencia uma realidade no contexto onde essas religiosidades são exercidas.
Aproximar-se da realidade das mulheres de dentro e de fora das comunidades e reconhecer a violência como algo ser superado e não suportado é tarefa pendente das igrejas para com suas fiéis e também para com todas as mulheres.
Constranger-se, sofrer a dor do outro, das milhões de mulheres violentadas e espancadas, maltratadas e humilhadas, esse é o desafio que o movimento de mulheres lança para toda a sociedade e que deve ser respondido também pelas igrejas.
Aprofundar nessas questões certamente demanda mais do que o esforço de reflexão de uma pessoa contido nesse artigo, mas precisa ser fruto de diálogos entre distintas atrizes e atores sociais em um processo de crítica e autocrítica.

Bibliografia:
ALEMANY, C. In Hirata, H. Dicionario critico do Feminismo. Ed. UNESP.São Paulo, 2009.
CARRASCO, C. Estatisticas sob suspeita. SOF, São Paulo 2012.
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Mulheres Brasileiras e gênero nos espaços públicos  e privados São Paulo 2010. Disponível em:  p://www.fpabramo.org.br/sites/default/files/pesquisaintegra.pdf
MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES. Documento dirigido à CPMI da Violência.2012
SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA. Mulheres em Luta por uma vida sem violência São Paulo, 2005. Disponível em: http://www.sof.org.br/artigos/mulheres-em-luta-por-uma-vida-sem-viol%C3%AAncia

Sarah de Roure é historiadora de formação, cristã por vocação e militante feminista por opção.

Um comentário:

  1. Excelente colocação pró mulheres-pró humanidade! Pois se não fosse uma delas, eu não estaria aqui (isto é, na Terra) enquanto homem...Ass.: Santos, E.N.

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