Tratar
da violência sexista, embora seja um assunto muito antigo, e até
tradicional entre o movimento de mulheres, não é tarefa fácil.
Primeiro, porque há inúmeras resistências em identificar determinada
violência como algo dirigido às mulheres como grupo social e, portanto,
fruto de uma relação de desigualdade. Em outras palavras, são muitos
os que se negam a reconhecer que a violência sofrida por mulheres não
se justifica de nenhuma maneira, mas se apoia na realidade das relações
sociais de sexo. Segundo, por uma conivência social com os atos de
violência praticados pelos homens, chegando a certa solidariedade que
se apoia em justificativas várias como a defesa da honra, “o homem
apaixonado fica maluco”, estar sob o efeito de alguma substância
entorpecente, etc.
Não é raro que se tente justificar essa violência com argumentos que
partem da ideia de que há uma forma certa das mulheres serem e fazerem
as coisas e quando saem dessa ordem merecem ser castigadas de alguma
forma. Por exemplo, quando uma mulher sofre uma violência sexual
rapidamente alguém pergunta que roupa ela estava usando ou como,
possivelmente, se insinuou justificando assim a violência e
responsabilizando a vítima.
Frente a isso, há quatro décadas, o movimento feminista brasileiro
luta para que a violência sexista seja compreendida como um problema
político, fundado nas relações de poder entre homens e mulheres e não
naturalizada ou tratada como algo privado e sem relevância social.
Mas o que é mesmo a violência sexista?
É a violência que as mulheres sofrem pelo simples fato de serem
mulheres e que é cometida por um homem, ou por uma instituição, em
geral e não por acaso, sob uma direção masculina. Pode ser percebida,
portanto, como a expressão mais dura da desigualdade entre homens e
mulheres.
Ainda que o espaço familiar e privado seja o principal lugar de
violência (a violência doméstica), a violência contra as mulheres afeta
todos os âmbitos, públicos e privados. Por isso suas causas não devem
ser procuradas nos relacionamentos familiares, mas sim na estrutura
patriarcal, nos modelos sociais e na distribuição desigual de poder
entre homens e mulheres. (CARRASCO, 2012).
Alemany, no Dicionario Crítico do Feminismo, define o verbete Violências assim:
“As violências praticadas contra as mulheres devido ao seu sexo
assumem múltiplas formas. Elas englobam todos os atos que, por meio de
ameaça, coação ou força, lhes infligem, na vida privada ou pública,
sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos com a finalidade de
intimidá-las, puni-las, humilhá-las, atingi-las na sua integridade
física e na subjetividade.”
O esforço para definir a violência é importante porque muitas vezes na
tentativa de visibilizar outras situações de violência, que também
precisam ser denunciadas, coloca-se tudo junto, entretanto essas têm
outra natureza e devem ser enfrentadas a partir da sua especificidade. A
violência sexista tem um agressor e uma agredida, e é dessa maneira
porque reflete uma relação de poder.
A partir do feminismo, a violência tem sido denunciada como
ferramenta de controle do patriarcado sobre a vida das mulheres e,
portanto, todas as mulheres são afetadas pela violência sexista.
Um retrato da violência machista no Brasil.
A violência machista no Brasil marca o cotidiano de milhões de
mulheres que se vêem sem direitos ou receosas em estar nos espaços
públicos, tendo sua liberdade de ir e vir cerceada, sua vida
profissional limitada, sua integridade física e psicológica violadas,
ou sua sexualidade controlada.
A pesquisa da Fundação Perseu Abramo de 2010 dá a dimensão da
amplitude: 18% das brasileiras reconhecem espontaneamente ter sofrido
alguma violência por parte de um homem. Quando estimuladas por uma
lista dos diferentes tipos de violência, essa proporção chegou a 40%,
ou seja, são cerca de 39 milhões de mulheres em todo o país que
sofreram ou sofrem alguma violência por parte de um homem. Uma em cada
10 mulheres já foi espancada pelo menos uma vez na vida.
Neste contexto, a criação da Lei Maria da Penha contribuiu para
desnaturalizar e tipificar a violência contra a mulher como um crime.
Após seis anos da lei, o grande desafio é implementá-la na prática em
todas as suas dimensões. Os obstáculos estão fundados na omissão dos
governos que, somado ao machismo presente no sistema judiciário,
secretarias de segurança e órgãos afins contribuem para que a Lei Maria
da Penha não seja aplica em sua integralidade. Uma pesquisa
Avon/Instituto IPsos revela que 52% das entrevistadas acreditam que
juízes e policiais desqualificam o problema da violência contra a
mulher.
Como resposta a essa problemática, o movimento de mulheres vem
debatendo a autonomia como meio para a liberdade das mulheres,
questionando as estruturas patriarcais entre as quais a violência de
gênero a que todas estão expostas, e também a sobrecarga do trabalho
reprodutivo, a concentração da renda nas mãos dos homens e a
consequente pauperização das mulheres.
Mas e as Igrejas frente a isso?
A pergunta remete a outras tantas possíveis, mas considerando a
denúncia da violência contra as mulheres como um campo de atuação dos
movimentos de mulheres é possível pensar em nexos entre estes e as
igrejas? O que poderiam ter em comum esses dois estranhos? Alguma
agenda, reivindicação ou método? O que salta aos olhos ao buscar algum
elemento comum são as próprias mulheres.
Por um lado, o movimento de mulheres tem como seu sujeito político
coletivo as mulheres organizadas em torno a reivindicações comuns e que
com suas práticas questionam a ordem patriarcal.
Do outro lado, as diversas igrejas têm seu cotidiano feito por
mulheres que ainda que, na maioria das vezes, não têm permissão para
ocupar os espaços de poder religioso. Seu trabalho e dedicação
cotidiana é que permitem a vida nos templos. Nesse sentido, o que as
comunidades religiosas têm a dizer sobre a violência que sofrem as
mulheres dentro e fora do espaço religioso ao olhar para si mesmas e
identificar que são femininas? Essa parece ser uma questão que emerge
com pertinência, porém, que permanece sem resposta.
Em 2012, a editora Novos Diálogos publicou na internet um pequeno
vídeo com uma fala sobre o que cristianismo e feminismo tinham em
comum. A resposta era breve, quase literária e pouco organizada como um
argumento teológico ou sociológico e afirmava várias convergências
possíveis entre ambos. A despeito do esforço em afirmar as
convergências, as reações negativas por parte de cristãos foram
múltiplas. Foram muitos que se dispuseram a comentar o vídeo com
tamanha virulência que foi difícil estabelecer um diálogo sobre seu
conteúdo.
Retomar o ocorrido ajuda a pensar nas dificuldades de construir
pontes entre o religioso e o não religioso, entre um discurso
considerado “sagrado” e outro chamado “profano”. Ou até mesmo das
enormes barreiras para perceber que vozes fora dos muros religiosos se
encarreguem de temas silenciados pelas igrejas.
Um primeiro passo na trajetória do combate a violência é reconhecer
que ela existe e é presente na vida de muitas brasileiras, esperando
que tal reconhecimento gere constrangimento entre as lideranças
religiosas do país. Além disso dizer respeito às mulheres que são parte
de suas comunidades, isso evidencia uma realidade no contexto onde
essas religiosidades são exercidas.
Aproximar-se da realidade das mulheres de dentro e de fora das
comunidades e reconhecer a violência como algo ser superado e não
suportado é tarefa pendente das igrejas para com suas fiéis e também
para com todas as mulheres.
Constranger-se, sofrer a dor do outro, das milhões de mulheres
violentadas e espancadas, maltratadas e humilhadas, esse é o desafio
que o movimento de mulheres lança para toda a sociedade e que deve ser
respondido também pelas igrejas.
Aprofundar nessas questões certamente demanda mais do que o esforço
de reflexão de uma pessoa contido nesse artigo, mas precisa ser fruto
de diálogos entre distintas atrizes e atores sociais em um processo de
crítica e autocrítica.
Bibliografia:
ALEMANY, C. In Hirata, H. Dicionario critico do Feminismo. Ed. UNESP.São Paulo, 2009.
CARRASCO, C. Estatisticas sob suspeita. SOF, São Paulo 2012.
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Mulheres Brasileiras e gênero nos espaços públicos e privados São Paulo 2010. Disponível em: p://www.fpabramo.org.br/sites/default/files/pesquisaintegra.pdf
MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES. Documento dirigido à CPMI da Violência.2012
SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA. Mulheres em Luta por uma vida sem violência São Paulo, 2005. Disponível em: http://www.sof.org.br/artigos/mulheres-em-luta-por-uma-vida-sem-viol%C3%AAncia
Sarah de Roure é historiadora de formação, cristã por vocação e militante feminista por opção.
Excelente colocação pró mulheres-pró humanidade! Pois se não fosse uma delas, eu não estaria aqui (isto é, na Terra) enquanto homem...Ass.: Santos, E.N.
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