O diretor executivo de KOINONIA, Rafael Soares de Oliveira |
Esta
semana, um crime de ódio contra uma menina de apenas 11 anos deixou
perplexos todos aqueles que têm a esperança de ainda experimentarem a
liberdade plena de culto no Brasil. “Tenho medo de morrer”, disse a
vítima, que, acompanhada de sua avó, continuou a ser hostilizada a
caminho do IML, onde faria o exame de corpo de delito. O que pode fazer
com que alguém se sinta autorizado a discriminar, ofender e agredir o
outro publicamente? Que espécie de respaldo imaginário leva criminosos a
investirem até mesmo contra uma criança, certos de que feri-la – ou
quem sabe acabar com sua vida – é a coisa certa a fazer?
A
convicção dos agressores se fia em uma lei diferente daquela que rege a
nós brasileiros, vivendo num Estado laico. É a partir de uma leitura
distorcida do sagrado que conseguem enxergar uma estranha pertinência no
desejo de acabar com o diferente. Certos de que são o povo eleito e de
que o adversário imaginário é o mal absoluto, atiram, infelizmente, não a
primeira, mas uma das muitas pedras – essa, por acaso, chegou ao
conhecimento público, contrariando a regra quando o assunto é ódio
religioso.
São fiéis seguidores de gente que se diz
evangélica (conheço muitos que seguem o evangelho e não agem assim), mas
gastam muito tempo pensando em “apedrejar” quem identificam como
pecadores ou pessoas que cultivam o mal. Convencidos de que são o povo
escolhido, querem separar em vida e na história o “joio do trigo”. Mas
isso não seria antievangélico?
Na raiz da separação
entre um “nós” de eleitos e um “eles” daqueles que devem ser eliminados,
qualquer semelhança com o Estado Islâmico, ‘apartaides’ e fascismos é
mera realidade! A tomada do Congresso pelas pautas desse grupo que surfa
na popularidade reacionária do conservadorismo deve ser combatida, com
democracia e direitos para toda gente.
No mesmo
Congresso, por esses tenebrosos dias de junho, vai sendo aprovada a lei
da menoridade penal, ou como dizem, da redução da maioridade penal. E
ainda corre entre comissões uma proposta esdrúxula de Estatuto da
Liberdade Religiosa cheio de jabutis para proselitismo entre povos
indígenas, fim de punições para agressões religiosas na mídia e outras
coisas exóticas que confundem liberdade como liberação para que se faça a
imposição sobre o outro, para pregações de negação de outra fé, enfim
para a oficialização dos eleitos apedrejadores. Melhor seria o que os
movimentos contra a intolerância pedem: um Plano Nacional de Superação
da Intolerância, com medidas claras do Executivo, do que arremedos em
“Estatuto sem liberdade”.
Com a expansão do conservadorismo religioso, refletido também no legislativo, a suposta lei que legitima a pedrada aproxima-se perigosamente das leis de verdade. E aí muito mais pedras virão.
A
situação é grave e conclama a reflexão de toda a sociedade e seus
poderes. No ano passado, o disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos
da Presidência da República, registrou 149 denúncias de discriminação
baseada na religião. De acordo com IBGE, são quase 600 mil
afro-religiosos no Brasil. Um estudo feito pela PUC-Rio mostrou que,
somente no estado, de 840 terreiros, 430 foram discriminados. Mesmo que o
Rio de Janeiro tenha sido o líder em intolerância no ano passado, a
comparação indica que muitos crimes não são notificados.
Vendo
esses dados nota-se uma conivência cultural histórica.Afinal parece que
paira uma sombra de dúvida naquelas pessoas que, crentes ou
não-crentes, se perguntam: será mesmo que não cultuam e cultivam o diabo
esses fiéis da umbanda, do candomblé e de outros cultos de origem
afro-brasileira? O silêncio e a ocultação, o olhar indiferente para essa
minoria de branco e de contas, ou guias, estranhas no pescoço, gente
que mantém essas “crendices” dos negros, ou gente “feiticeira”, não é
privilégio dos fundamentalistas da distorção bíblica e antievangélica.
Atitudes que persistem mesmo em face às negações e manifestações sobre a
fé daqueles de religião de matriz africana, que afirmam não conhecer
diabo e não cultivarem o mal!
Pois, outra
característica que chama atenção é a recorrência com que os atos de
intolerância acontecem em espaços públicos, indicando que os agressores
não temem praticar seus crimes, talvez por imaginarem que estão acima
das leis. O pior é que o limite entre delírio coletivo e realidade vai
se estreitando e pode até vir a se desfazer. Com a expansão do
conservadorismo religioso, refletido também no legislativo, a suposta
lei que legitima a pedrada aproxima-se perigosamente das leis de
verdade. E aí muito mais pedras virão.
Uma pedrada
numa criança pode mudar tudo? Oxalá sim, por Oxalá, por Deus, por Jeová,
por Jesus, por que nome tiver o divino e pelos que querem a paz, a
liberdade e a democracia e direitos para toda gente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário